Busca do belo para além da aparência é o que nos permite sair de nossa animalidade

A natureza é injusta: cria belos canalhas, feios sublimes, desejos insatisfeitos, inteligências superiores, morais inferiores, tudo junto e misturado

  • Por Adrilles Jorge
  • 10/07/2021 10h00
Unsplash Pessoa segurando um pedaço de espelho quebrado. Dá para ver só um olho. A beleza formal é um mero signo frontal do que nos excita e move

A beleza é relativa, dizem os relativistas. A feiura é absoluta, sabem os feios. Toda pessoa sabe que os belos levam vantagem — não só nas relações afetivas e sexuais, mas em tudo. O desejo, a contemplação do belo, da harmonia das formas, do signo de fecundidade para homens e mulheres, altera toda a percepção que temos das pessoas e também de uma complacência maior em meios trabalhistas, em julgamentos, em amizades, em afetos, e em preferências sócio afetivas em ambientes de todos os tipos. Uma recente pesquisa feita pelo The New York Times conceitua este preconceito contra os feios: ”lookism”, que é quando a beleza se sobrepõe a todos os outros méritos da pessoa. Não precisava de pesquisa. Desde Freud sabemos que não exatamente a beleza em si, mas a pulsão sexual calcada nos estereótipos biológicos e culturais da beleza, comandam em boa parte nossas atitudes — conscientemente ou inconscientemente.

A beleza formal é um mero signo frontal do que nos excita e move. Não que saiamos tentando pegar todos os corpos belos que arrastam nosso desejo. Mas, subliminarmente, os signos da beleza nos atraem e mesmo que sublimemos a atração mais imediata, esta atração sexual e estética nos impele a favorecer nossas relações, mesmo que platônicas, na maioria. “Platônico”, aliás, é o que vai contra o freudismo que nos diz que tudo no fundo vem de nossa safadeza enrustida. As proporções do belo na busca da verdade, da justiça, da harmonia do mundo e seus conceitos estão no centro da obra platônica. Em tese, o princípio platônico de beleza não se ajusta ao sexismo aparente de Freud. Mas uma coisa se complementa à outra, se bem lidas. Nós somos sim animais abjetos e insaciáveis em nosso desejo. A civilização nasce da castração destes nossos desejos em certa medida. E esta busca platônica do princípio do belo para além da aparência é o que nos permite sair de nossa animalidade, coisa que Freud também concluiu mas não descreveu bem como Platão.

O belo como justo, bom, agradável à sociedade é um instinto imposto pela construção de uma natureza humana que pode ir além da condição humana mais natural e animalesca. A natureza humana é mutável na construção inclusive de seus desejos. Desejar sair dos estereótipos reprodutivos dos signos da beleza — a saber, quadris largos, harmonia dos traços e seios fartos na boa parideira; ombros largos, altura, harmonia nas faces para os bons parideiros; mudar os gostos afetivos sexuais, bem como, e sobretudo, alimentar desejos de construir um mundo melhor para as pessoas ao redor para além dos próprios desejos primitivos é o que nos torna humanos — e diferenciados dos animais comuns. O cristianismo mesmo explica esta dualidade e concilia o freudismo com o platonismo: segundo o conceito de pecado original, nascemos todos faunos canalhas safados que só querem furunfar, satisfazer nossos desejos mais imediatos e tomar, pela força, mulheres, países, povos e pessoas e subjugá-los pela opressão de nosso desejo.

Pela civilização e pelo reino dos céus e o utópico paraíso na Terra, aprendemos a domar nosso desejo e construir um desejo pelo bem do próximo e pelo bem da humanidade. A renúncia deste desejo imediato em nome de um desejo pelo bem do próximo seria uma realização para além do desejo imediato. Começamos como bichos freudianos, passamos pela idealização construída do belo em Platão e terminamos como possíveis santos do cristianismo. Só que a separação não é tão elementar assim. O tempo todo somos sub-repticiamente confrontados com nosso desejo — inconsciente ou não — por quem trabalhamos, por quem somos amigos, por quem somos próximos. O tempo todo somos tentados a crer mais no aspecto aparente de uma estética que nos parece bela e fala com nossos instintos primários. E no mais das vezes confundimos tudo sem termos consciência de nossa confusão. E esta busca de uma verdade bela, que atravessa nossos impulsos primitivos, nos leva a um possível sentido de realização. E a realização mesmo efetuada do nosso desejo sempre se esgota em si mesma: no sexo consumado, há o vazio do pós coito. No amor em permanente construção, há um apelo a uma realização que vai além do orgasmo, na criação de filhos e de uma sociedade que não se deixa levar apenas pelo desejo movido pelas aparências.

A natureza é injusta. Cria belos canalhas, feios sublimes, desejos insatisfeitos, inteligências superiores, morais inferiores, etc, tudo junto e misturado. O que cria um princípio de justiça é justamente a nossa percepção do belo para além das aparências formais da beleza e de nosso desejo. Agora, não adianta também querer fazer cotas para feios e domar nossos instintos de apreciação de beleza e do desejo primitivo. Fazer uma assepsia na condição humana de cima pra baixo é a pior das opressões. O que nos torna humanos é também, e sobretudo, tentar conciliar nossa animalidade com nossa capacidade de transcender nosso primitivismo em avaliação da beleza e sexualidade. E transformar nossa sexualidade em amor. Nosso desejo em vontade de beleza para além das aparências. Somos bichos transcendentais que tentam tirar algum princípio de beleza sublime na lama mais grotesca de nossa matéria. Isto é a beleza trágica do humano.

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