Bala perdida nunca tem dono, mas deve bater recorde de crianças mortas

Em meio a uma guerra civil travada por policiais e bandidos, dados somem misteriosamente e meninos e meninas perdem a vida enquanto brincam na calçada de casa

  • Por Álvaro Alves de Faria
  • 06/01/2021 13h01 - Atualizado em 06/01/2021 14h16
Fernando Frazão/Agência Brasil Protesto na praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, contra a morte de crianças vítimas de violência

Duas crianças mortas a cada dia pela polícia. Não, uma manchete assim é inadmissível em qualquer país mais ou menos civilizado. É de uma tristeza inaceitável, de uma perversidade sem tamanho. Mas é isso o que informa o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, observando que, de 2017 a 2019, policiais mataram pelo menos 2.215 crianças e adolescentes em todo o país. Por esse motivo, milhares de mães do Brasil, que tiveram seus filhos assassinados, estão criando um movimento nacional contra esses números assustadores. A gota d’água foi a morte recente das meninas Emilly e Rebecca, de 4 e 7 anos, em Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, onde essa matança, infelizmente, se tornou comum. Brincavam na calçada de casa e foram atravessadas pelas balas de fuzil que nunca se sabe se do bandido ou do policial. O Núcleo de Mães Vítimas de Violência já está criado e provocou o surgimento de outros 28 semelhantes, concentradas na Rede Nacional de Familiares Vítimas do Terrorismo do Estado. Esse grupo foi fundado por Deise Carvalho, 48 anos, que teve o filho Andrew, de 17, preso e torturado até a morte numa delegacia. Nunca ninguém foi responsabilizado por nada, a exemplo de praticamente todos os casos idênticos de balas perdidas, especialmente no Rio de Janeiro. Deise defendeu tese para o curso de direito com a monografia “Crianças e Adolescentes Vítimas da Polícia”. Ela explica que o Núcleo de Mães tem o objetivo de dar suporte emocional a outras famílias e mantê-las unidas para punir os assassinos de seus filhos.

É sempre assim. No caso das meninas Emilly e Rebecca, a polícia sempre nega que tenha feito os disparos. E dizem sempre que os tiros partiram dos fuzis dos bandidos. Sempre foi assim e continuará sendo assim. No caso das meninas Emilly e Rebecca, as armas dos policiais foram apreendidas, mas quase nunca se sabe do resultado das investigações. O maior número de vítimas de disparos nas comunidades do Rio de Janeiro é de crianças e jovens negros, pobres e moradores da periferia. A violência maior ocorre no Rio de Janeiro, onde a investigação desses crimes sofre todo tipo de dificuldades e quase sempre nada é revelado. Por exemplo: o que se diz hoje sobre a menina Ágatha Félix, de 8 anos, assassinada por um policial quando voltava da escola para casa, no Complexo do Alemão, em 2019? O que se diz sobre esse caso? Nada, absolutamente nada! Alguém foi punido? Não. Ninguém foi punido. E a menina que tinha a vida por viver, foi transformada apenas em um número numa ocorrência que mereceu somente alguns dias de discussão e depois foi para o esquecimento.

Pesquisador do Grupo Sou da Paz, Leonardo Carvalho, afirma que nunca nada se sabe das investigações desses crimes. Informa que, em 2019, quase 7% do que foi investigado se perdeu, sem nenhuma explicação. Mas sabe-se que mais da metade dos assassinatos atingiu crianças e adolescentes de 12 a 17 anos. A mesma coisa acontece em São Paulo, de acordo com informação do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. As informações não são passadas às famílias das vítimas e tudo se torna mais difícil quando o assassino é da polícia. A diretora-executiva do fórum, Samira Bueno, observa que o crime que tem o pior preenchimento de dados é o que envolve policiais. Diz que, se o Estado tirou a vida de alguém, é exatamente esse crime que deveria ter mais transparência no que diz respeito aos dados sobre a ocorrência. Samira faz o retrato perfeito das vítimas ou possíveis vítimas e as preferências das balas que ceifam tantas vidas. Como ela observa, existe uma determinada ideia de criminalização que se resume num olhar de estigma quanto à juventude, um certo estereótipo do indivíduo criminoso que passa pelo adolescente da favela que usa boné, bermuda e chinelo e que, para completar, ouve funk. Basta isso para ser um criminoso em potencial. Nesse caso, o que seria uma simples abordagem, termina em tragédia. A vítima dificilmente é o policial. O número de mortos por balas perdidas, especialmente no Rio de Janeiro, é vergonhoso perante o mundo. E assustador é o número de crianças atingidas por balas de fuzil. Crianças atingidas até mesmo dentro de casa, deitadas na cama de dormir. 

De janeiro a outubro de 2020, exatamente cem pessoas foram atingidas por balas perdidas na região metropolitana do Rio de Janeiro. Desse total, 25 eram crianças e adolescentes, e 11, idosos. Esses dados são da Plataforma Fogo Cruzado, que monitora os tiroteios entre bandidos e policiais nas comunidades do Rio. Em 2020, a pandemia atrasou um pouco o número de baleados. Foram cem, de janeiro a outubro. No ano anterior, esse número havia sido atingido no mês de julho. A analista da Fogo Cruzado, Maria Isabel Couto, diz que o número chama atenção diante da decisão do Supremo Tribunal Federal de ter proibido intervenções policiais nas favelas durante a pandemia. Segundo levantamento da ONG Rio de Paz, 2020 poderá bater o recorde no número de crianças mortas no Rio de Janeiro por balas perdidas. Revela que, nos últimos cinco anos, houve uma mudança nos casos de crianças baleadas e mortas em tiroteios entre bandidos e policiais e entre bandidos disputando território para venda de drogas. De 2007 a 2017, a média era de três crianças mortas por ano. Em 2015, esse número atingiu pela primeira vez sete mortes. De 2016 a 2018, foram dez casos. Em 2019, o número caiu para sete. Já 2020 poderá se tornar o ano em que mais crianças morreram atingidas por balas perdidas.

Esta informação revela bem a fotografia sombria do que estamos tratando aqui: em 2019, a região metropolitana do Rio de Janeiro registrou 7.365 tiroteios e disparos de arma de fogo, que deixaram 2.876 baleados.  Desse total, houve 168 casos de balas perdidas, em que 189 pessoas foram atingidas. Dos atingidos, 53 morreram. São números de uma guerra civil. Os números se misturam, a informação correta nunca é apresentada pelos órgãos de segurança. E as pessoas continuam morrendo, incluindo crianças que brincam na calçada e recebem um tiro de fuzil no peito. As investigações correm sempre em sigilo e terminam em nada. E sempre resta uma mãe acariciando o retrato do filho ou da filha, criança ou adolescente, assassinados sem consequência nenhuma para ninguém. Que país é este? É difícil responder, especialmente no que diz respeito ao Rio de Janeiro, onde existem três governos: o chamado oficial, o dos traficantes e o dos milicianos. E isso não acontece somente no Rio. São Paulo segue a mesma trilha, o que acontece, também, com outras capitais onde o crime tornou-se algo comum, já faz parte da paisagem. As meninas Emilly e Rebecca, para nossa vergonha, já fazem parte do passado. Do esquecimento.  

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