Descaso do governo federal cria uma corrida desesperada pela vacina em todo o Brasil

Como o Planalto sabota sua própria campanha de imunização, governadores, empresas e associações médicas decidiram ignorar o Ministério da Saúde e negociar eles mesmos com os laboratórios

  • Por Álvaro Alves de Faria
  • 29/01/2021 12h37 - Atualizado em 29/01/2021 12h41
Marcelo Camargo/Agência Brasil - 16/09/2020 Bolsonaro na posse de Eduardo Pazuello O presidente Jair Bolsonaro faz troça da vacina, mas segue enaltecendo a cloroquina, medicamento sem eficácia comprovada contra a Covid-19

Tinha mesmo que dar nisto que deu. Diante do descaso do governo federal, os estados negociam eles mesmos a compra de vacinas. Os contatos com farmacêuticas estrangeiras estão sendo feitos fora do Plano Nacional de Imunização (PNI). Chega uma hora que não há mesmo o que fazer. Ou então o Brasil vai mendigar vacinas, que chegarão a conta-gotas. Um pouquinho de cada vez. Quando tinha de comprar, o Planalto deu as costas aos laboratórios vendedores. A busca é por qualquer vacina, incluindo a Sputnik V, da Rússia, disputada por vários governadores. Esperar o governo nessa questão é atraso de vida. Então, a ordem é agir. É o que os governadores decidiram fazer. Enquanto isso, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) passa o tempo desacreditando e até aconselhando a não usar a vacina contra a Covid-19. Na verdade, a palavra presidencial muda a cada dia. Agora até passou a defender a compra de vacinas por estados e clínicas particulares, observando que essa medida ajudará o país na crise econômica criada pela pandemia.

Bolsonaro mudou seu discurso de repente. Passou o tempo todo duvidando da eficácia das vacinas e agora diz que os imunizantes são importantes para que a economia brasileira não deixe de funcionar. O presidente afirma que logo logo o Brasil estará nos primeiros lugares na vacinação no mundo. Diz que já deu aval para que várias empresas brasileiras comprem, elas mesmas, 33 milhões de doses, especialmente as produzidas pela Universidade de Oxford juntamente com a farmacêutica AstraZeneca. Mas metade dessas vacinas compradas por empresas e clínicas particulares terão de ser divididas com o governo para alimentar o Sistema Único de Saúde (SUS). O capitão até apelou para que esses empresários levem a ideia adiante. Mas ele continua defendendo o que chama de “tratamento precoce”, aquele com cloroquina, mesmo admitindo que os medicamentos indicados não têm eficácia comprovada pela ciência.

O presidente observa, também, que hoje toda morte é colocada na lista das vítimas da Covid. Quer dizer: duvida que o Brasil já some 220 mil mortes provocadas pela doença. Claro que não dá para levar essa conversa a sério, ou então ficaremos todos loucos. O inimigo não é só o vírus. O inimigo é, também, muitos que se alinham ao negacionismo, achando que tudo não passa de uma ilusão de ótica. O mundo inteiro está enganado e se deixou levar por uma mentira. Seja como for, os governadores e clínicas particulares estão negociando por conta própria, porque perceberam que esperar o governo federal é perder tempo e, pior, perder muitas vidas. Muitos governadores já requisitaram autorização ao Supremo Tribunal Federal para comprar as vacinas e distribuir sem o registro da Anvisa. É duro dizer, mas a verdade é uma só, doa a quer doer: o Brasil não tem vacina.

Em comunicado divulgado na terça-feira,26, a farmacêutica Pfizer descartou a venda à iniciativa privada brasileira, seguindo a decisão do laboratório AstraZeneca. A multinacional americana entende que a vacina é um bem que o governo de um país deve distribuir à sua população como parte de um programa nacional. Sendo assim, não há como negociar com clínicas e empresas particulares. Já o governador de São Paulo, João Doria, afirma que não participa desse grupo de governadores. Explica que a prioridade na sua agenda é a produção de novas doses da chinesa CoronoVac, desenvolvida com o Instituto Butantan, de São Paulo. E dentro desse quadro melancólico, clínicas privadas brasileiras fecharam negócio com o laboratório indiano Bharat Biotech, que produz a vacina Covaxin, conforme informação nesta quarta-feira, 27, da Associação Brasileira das Clínicas de Vacinas (ABCVAC). O acordo fechado prevê a compra de cinco milhões de imunizantes que ainda não foram testados na chamada fase 3. Também há a necessidade da aprovação da Anvisa. A associação que negociou com a Índia representa 70 por centro do setor no Brasil, reunindo mais de 200 associados. A vacina da Índia também interessa ao Planalto, que pretende comprar 50 milhões de doses.

O governo vive de informações desencontradas, o que revela, na verdade, quais são suas atitudes na vacinação. Conversa-se muito e nada se resolve. Só conversa, conversa, conversa… E em todo esse papo sem fim, nota-se a verdade de que o Brasil não tem vacina e as iniciativas de compra por clínicas particulares andam por caminhos confusos, deixando sempre no ar, não uma certeza, mas aquela dúvida de sempre. Agora o governo de São Paulo deu prazo até a semana que vem para o Ministério da Saúde informar se deseja comprar as 54 milhões de doses adicionais da vacina CoronoVac. A pasta respondeu que, por contrato, decidirá no dia 31 de maio. Parece brincadeira. Como se a vida pudesse esperar. Mas isso é comum em tudo que não disponha de uma liderança e de uma palavra firme, não essa que muda todos os dias, sempre envolvida em descaso. Nesta sexta-feira, 29, o governador João Doria disse ao Jornal da Manhã, da Jovem Pan, que se o governo federal não resolver até a semana que vem, as vacinas serão produzidas e vendidas para outros estados e municípios brasileiros e também exportadas para países vizinhos. Tem que fazer isso mesmo. A resposta do ministério, de que decidirá somente no dia 31 de maio, é o mesmo que dizer: “Não estou nem aí!”. No fundo de tudo isso, resta a certeza de que o Brasil é contra a vacinação. O mundo inteiro está errado. Só o governo brasileiro está certo.

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