Ordem no Brasil é deixar todo mundo sair às ruas, só precisa sobrar alguém para enterrar os mortos

Cientistas, economistas, empresários e ex-ministros consideram urgente um lockdown no país, mas o governo insiste que o isolamento das pessoas contra o coronavírus é uma estupidez

  • Por Álvaro Alves de Faria
  • 22/03/2021 12h18 - Atualizado em 22/03/2021 13h02
Antonio Molina/Fotoarena/Estadão Conteúdo Cemitério da Vila Formosa Retroescavadeira abre covas no cemitério da Vila Formosa, em São Paulo

As últimas notícias sobre a pandemia são assustadoras. E o comportamento de muitos diante desse cenário dramático também. Assustam essas vozes que se põem a falar contra as restrições para enfrentar o vírus, como especialistas da verdade, o que está se transformando numa verdadeira guerra entre brasileiros. E nessa contenda, o presidente Jair Bolsonaro tem uma participação decisiva ao alimentar uma discussão que joga cada vez mais o país para baixo. O vírus é uma mentira. A doença também. Os mais de 270 mil mortos idem. Bolsonaro já avisou que não colocará seu exército rua para proibir que as pessoas saiam de casa. E entrou com uma ação no STF contra as medidas restritivas decididas por governadores. Realmente, o isolamento das pessoas contra o coronavírus é uma estupidez, não é mesmo? Uma grande estupidez. A ordem é deixar que todos saiam às ruas, mas que fique alguém para enterrar o país numa cova rasa. Mas nessa história mórbida há uma ressalva necessária: O que fazer com o transporte público, em que as pessoas viajam uns encostados nos outros, uma fábrica de contágio? No entanto, isso depende de decisões firmes e civilizadas dos governos municipais, estaduais e o federal também, desde que o presidente da República decida colaborar, que é sua obrigação, e não criar intrigas e desavenças todos os dias. Parece torcer pelo vírus.

A microbiologista e fundadora do Instituto Questão de Ciência, formada em ciências biológicas pelo Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP), PhD com pós-doutorado em microbiologia, na área de genética molecular de bactérias pelo Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICM-USP), Natalia Pasternak, falando ao “Jornal da Manhã”, da Jovem Pan, na quarta feira, 17, defendeu soluções mais drásticas e restritivas no combate à Covid-19, observando que as medidas que estão sendo tomadas são bem-vindas, mas não suficientes para o atual estágio da pandemia no Brasil. Em sua defesa ao lockdown, disse que o país nunca teve coragem de implementar essa medida como se deve. Se não for implementado um lockdown de verdade, o sistema de saúde no Brasil vai mesmo entrar em colapso total. Adiantou que o isolamento tem que ser mais drástico e restrito porque o país vive hoje uma situação dramática. 

Natalia Pasternak afirmou que em um ano de pandemia, o Brasil já devia ter aprendido a lição. Assinalou que os países que tomaram medidas mais drásticas conseguiram diminuir o número de mortos vítimas do vírus. Disse que muita gente precisa parar com esse mimimi (ou só vão parar quando a mãe de um deles morrer da doença). É possível que, numa situação assim, consigam enxergar melhor e mudar de opinião sobre o lockdown. Nessa entrevista à JP, a microbiologista afirmou textualmente que não haverá hospital para a mãe, para o pai, para a avó. E nesses casos, o dinheiro é o que menos conta. Não adianta ter dinheiro para combater a Covid-19. Natalia explicou que, neste momento, o Brasil vive um “tsunami” de casos. E se o povo achar que o vírus não existe e ignorar as recomendações, logo poderemos ver pilhas de mortos nas ruas, com o colapso total inclusive do sistema funerário. Afirmou não ser humanamente aceitável perder perto de 3 mil vidas por dia. Isso não pode ser ignorado. É imprudente continuar negando a importância do lockdown para conter o avanço da doença. Pior é que a vacinação caminha lentamente por falta de doses. Até onde ela sabe, gente morta não movimenta a economia, só o serviço funerário e, sem uma mudança na Saúde e o fim do negacionismo, a situação tende a piorar mais. 

Diante de uma afirmação assim de alguém como Natália Pasternak, é difícil compreender aqueles que, todos os dias, dizem que o lockdown é uma medida ineficaz, colocando-se acima da ciência por questões ideológicas ou sabe-se lá por quê. Uma cantilena que se repete e chega a ser raivosa, com conceitos que não se sustentam. Então, a ordem é abrir tudo, deixar que todos saiam às ruas. Abrir o comércio, os restaurantes, os cinemas, os parques, os bailes funk, o pancadões, abrir tudo, cada um faça o que quiser da vida, como aliás, reza a Constituição brasileira no que diz respeito ao direito de ir e vir. Mas que reste alguém para enterrar os mortos. Ou não é assim?

Neste domingo, 21, empresários, ex-ministros e economistas divulgaram um manifesto pedindo medidas efetivas para combater a Covid-19, afirmando que já há necessidade de se pensar num lockdown nacional. Pediram também apoio à vacinação e ao uso da máscara, que, no Brasil, parecem ser coisas descartáveis, seguindo a política que reina agora. A carta será encaminhada hoje, segunda-feira, 22, aos representantes dos três poderes, citando como medidas urgentes acelerar o ritmo da vacinação, distribuir máscaras gratuitamente, implantar medidas de distanciamento social e criar uma instância de coordenação dessas medidas em todo o país. Criticando o empenho do governo federal até agora diante do que está acontecendo, o documento observa que a situação é desoladora. Chegou aonde tinha de chegar. De acordo com o manifesto, o governo despreza as medidas de combate ao coronavírus numa ação de incompetência, ignorando e negligenciando a ciência. A carta observa ainda que a demora para vacinar a população é muito mais danosa que a redução da atividade econômica para o país. Assinala, também, que chegamos a um ponto em que não há mais tempo a perder com debates estéreis e notícias falsas. Hoje o Brasil vive uma situação sem precedentes de sua história.

Esse descalabro descrito nesse manifesto de economistas, empresários e ex-ministros revela uma incompetência vergonhosa daqueles que, desde o início, ignoraram o mal e até ofenderam a população preocupada. Seremos um país de doentes e de mortos. Nunca se imaginou que o Brasil, um dia, pudesse representar uma ameaça para o mundo. Mas é isso que está ocorrendo. A doença avança sem controle, onde o presidente da República entra com ação no Supremo Tribunal Federal contra as medidas restritivas determinadas por governadores e prefeitos do país. Essas pessoas conhecem e sabem o que ocorre em seu território, ao contrário do governo federal que sempre se manteve distante desse drama com mais de 270 mil brasileiros mortos. Distante e contra todas as medidas que buscam enfrentar o vírus. Sempre contra. Sempre. Fazer o que num país que prefere o caminho da desordem que chega a ser inacreditável.

Enquanto isso tudo acontece por aqui, para citar apenas um exemplo, a França determinou um lockdown de um mês em Paris e parte do norte do país. Um mês. Motivo: a vacinação que ocorre lentamente e a disseminação de variantes do vírus altamente contagiosas. O presidente francês Emmanuel Macron decidiu mudar os rumos diante desse cenário. É preciso lembrar que Macron sempre foi contrário às medidas restritivas, dizendo sempre que faria tudo para deixar aberta a segunda maior economia da zona do euro. E então? A França isolando Paris por um mês. Deve ser mesmo um país de imbecis, não é mesmo? Um país qualquer da Europa. Uma zona. Só um país de idiotas tomaria uma medida assim, não é? Deve ser. Só um país de idiotas. O Brasil está certo em tudo que faz contra a Covid-19. É um exemplo para o mundo. Estamos de parabéns.

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