Ricardo Barros deveria estudar mais para não pregar um golpe sem qualquer constrangimento

Discussão de alguns que insistem em uma nova Constituição começa a criar mais um foco de tensão e atritos já comuns à paisagem existencial do Brasil

  • Por Álvaro Alves de Faria
  • 29/10/2020 11h55 - Atualizado em 29/10/2020 11h58
Michel Jesus/Câmara dos Deputados Ricardo Barros em audiência na Câmara Líder do governo na Câmara, Ricardo Barros diz que Constituição deixou Brasil ‘ingovernável’

Atualmente, para se dar um golpe no Brasil, não é mais necessário colocar tanques de guerra e soldados nas ruas, munidos de metralhadoras. Não. Nada disso. Um golpe hoje é muito mais simples. Basta que um deputado, por acaso líder do governo Bolsonaro, use a tribuna da Câmara e lance a ideia de uma nova Constituição para o país. Basta seguir nessa discussão e quem sabe chegar lá, na convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte. Basta isso. Mudar a Constituição é consolidar um golpe. O deputado Ricardo Barros, do PP, usou a tribuna da Câmara para pedir um plebiscito visando a mudança da Constituição Federal de 1988. Repetiu o ex-presidente José Sarney, ao dizer que a Constituição de 1988 transforma o Brasil num país ingovernável. E que um dia isso teria de mudar. Parece que esse dia chegou, de acordo com a palavra veemente do deputado Ricardo Barros.

“Temos um sistema ingovernável, estamos há seis anos com um déficit fiscal primário. Gastamos mais que a arrecadação. O contribuinte não suporta mais do que 35% da carga tributária. O governo não tem condições de assegurar os direitos dos cidadãos conforme reza a Constituição.” Que discurso bonito! Ninguém sabe se o deputado falou em seu nome ou passou para o país um recado de alguém acima dele. De acordo com o parlamentar, a Constituição de 1988 só tem direitos e não tem deveres. Por isso defende a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte e quer um plebiscito, como fez o Chile. Alvo de investigação do Ministério Público Federal, o deputado reclama especialmente do que chama de “ativismo político judiciário”. O ministro do STF, Luis Roberto Barroso, afirma que mudar a Constituição é uma ideia infeliz. Explica que temos no Brasil uma democracia bastante sólida, que vive sob a Constituição de 1988 há 32 anos: “Tivemos momentos difíceis na vida brasileira. Alguns momentos reais, alguns momentos puramente retóricos, mas até hoje ninguém cogitou de uma solução que não fosse o respeito à legalidade constitucional. Temos instituições que têm resistido adequadamente aos vendavais constantes”, diz Barroso. Já o ex-juiz e ex-ministro da Justiça Sérgio Moro observa que o que atrapalha o Brasil é a corrupção, não as leis: “O que dificultou a governabilidade do Brasil nos últimos anos foi a corrupção desenfreada e a irresponsabilidade fiscal, não a Constituição de 1988, nem a Justiça ou o Ministério Público”.

Por seu lado, o ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, Ayres Brito, diz que um país se torna ingovernável quando dá as costas à sua Constituição. “Se bem entendida, bem interpretada e bem aplicada, a Constituição conduzirá o Brasil ao melhor dos destinos, um destino politicamente democrático, filosoficamente humanista e culturalmente civilizado”, afirma. Já o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, lembra bem que a Constituição de 1988 foi o marco do processo de redemocratização do país. Observa que para solucionar os problemas do Brasil é preciso a realização das reformas por meio de emendas, e não escrever uma nova Carta: “Vamos ficar no nosso foco. Senão, vamos transmitir insegurança para a sociedade”, afirma Rodrigo Maia, com toda razão, porque essa discussão de alguns que insistem nesse assunto começa a criar mais um foco de tensão e atritos já comuns à paisagem existencial do Brasil. Antes de tudo, gente como o deputado Ricardo Barros, líder do governo Bolsonaro, devia saber que o Chile é o Chile, e que o Brasil é o Brasil. Os dois países têm histórias diferentes. Esse deputado devia estudar mais e ler mais sobre a transição democrática brasileira, em vez de subir à tribuna da Câmara e – não nos enganemos – simplesmente pregar um golpe de Estado com a cara dura, sem qualquer constrangimento. O vice-presidente, general Hamilton Mourão, se apressou em dizer que o governo não tem nada com isso. Recorro, aqui, à palavra de outro ex-presidente do STF, Carlos Velloso, que resume toda a história. Diz ele: “Em síntese, essa proposta é golpe de Estado. Porque não se muda a Constituição ao saber a vontade das pessoas. A Constituição foi feita para durar”. Vamos ver até quando vai mais esse balão de ensaio brasileiro. Primeiro joga-se a ideia no ar para sentir a reação. Pois a reação foi péssima. Numa democracia, ideias fascistas não têm lugar. Golpe é coisa de gente totalitária. E de gente totalitária o Brasil já cansou. Chega.

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