Relatório da CPI da Covid-19 banaliza a história dos crimes contra a humanidade

Mirando a popularidade do presidente em exercício, o texto final da comissão apela, num cálculo político arriscado, à vulgarização das atrocidades praticadas por regimes totalitários

  • Por Bruna Torlay
  • 22/10/2021 10h00
Edilson Rodrigues/Agência Senado - 20/10/2021 Renan Calheiros, em trajes sociais e máscara, gesticula durante pronunciamento em sua cabine na CPI da Covid-19, com sua imagem refletida pela divisória transparente O senador Renan Calheiros, relator da CPI, foi o responsável pelo relatório final

Um povo sem memória é um povo sem valores. Afinal, o registro das experiências humanas tem sido, desde sempre, o melhor professor dos homens quanto à sua permanente capacidade de perverter-se. O relatório final da CPI, cego à memória do Ocidente, carrega nas linhas e entrelinhas uma perversão nascida de disputas políticas acirradas: com a intenção de destroçar ao máximo a imagem e popularidade do presidente em exercício, o texto final do relator apela, num cálculo político arriscado, à banalização dos crimes contra a humanidade. A tipificação de “crimes contra a humanidade” é uma conquista do direito internacional diante do desafio de criar meios para punir (e sobretudo prevenir) ações políticas como as praticadas pelos oficiais nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. Embora todos os totalitarismos da primeira metade do século XX tenham promovido perseguições e assassinatos em grande escala, a chamada “solução final” chocou o mundo. A série de filmes sobre a captura e julgamento de Adolf Eichmann, oficial do alto escalão nazista responsável por arquitetar a concentração de judeus destinados à morte, seguindo decisão do regime nazista, evidencia o porquê.

Eichmann, capturado pelos EUA ao final da guerra, conseguiu escapar e acabou refugiando-se na Argentina com o auxílio de organizações secretas de oficiais da SS. Em 1960, contudo, o serviço secreto israelense Mossad localiza o então homem mais procurado do mundo e o sequestra, numa operação meticulosamente descrita no filme Operação Final” (Chris Weitz, 2018), baseado no documentário “Inside the Mossad”, de 2017, que contou com relatos do espião Rafi Eitan, líder da operação que levou o ex-oficial nazista a Israel, onde foi julgado e executado. Todos os participantes daquela bem sucedida operação secreta, diga-se de passagem, perderam familiares durante o Holocausto. Eichmann só pôde embarcar para Israel após assinar um termo de aceite, o que demorou 11 dias, ao longo dos quais, em diálogos com os integrantes da equipe, não demonstrou remorso nem consciência de responsabilidade moral pelos atos que cometera.

Ao longo do julgamento (registrado pela sétima arte no brilhante A solução final”, de Robert Young, 2009), Eichmann justifica os crimes pelos quais é acusado recorrendo ao célebre argumento segundo o qual “cumpria de ordens”, isto é, agia conforme as leis vigentes no regime a que serviu. O cinismo inspirou inúmeras reflexões desde então, uma vez que, agindo ou não conforme a legalidade nazista, coube a ele pensar no meio prático de exterminar em massa um povo. A certa altura do interrogatório em Israel, ao ser interpelado: “500 mil crianças em 4 anos!”, responde: “Eu sei, mas… eram judeus”. Foi a este ser-humano, que ordenou e acompanhou fuzilamentos em massa de seres humanos concentrados em valas na Hungria, que o senador Alessandro Vieira comparou Eduardo Pazuello na CPI da Covid-19, quando este alegou aplicar políticas determinadas pelo comitê de gerenciamento nacional da doença que afetou milhares de brasileiros. Uma doença desconhecida cujo gerenciamento, no Brasil e no mundo, esteve submetido a tentativas e erros – e cujo resultado ainda não foi exaustivamente avaliado. 

Crimes contra a humanidade consistem na execução sumária de seres humanos por agentes de um Estado autoritário cujo horizonte são leis que violam a dignidade humana. No caso do Reich nazista, duas leis aprovadas em 1935 legitimaram a exclusão e posterior aniquilação de judeus sob o Estado em vigor: a Lei de proteção do sangue e da honra alemã e a Lei de cidadania do Reich. Só a primeira, que invadia a esfera privada, considerando crime o “casamento inter-racial” entre alemães e judeus, e acusando de “corrupção sexual” quem o “cometesse”; só esta primeira lei acarretou a condenação de cerca de 420 pessoas por ano entre 1936 e 1939. A segunda, por sua vez, destituía os judeus de todos os direitos assegurados aos alemães, mantendo, contudo, seu dever de sujeitar-se às leis nacionais. Portanto, foi porque os atos nazistas tinham base legal que foi necessário julgá-los num tribunal internacional. É a um Estado totalitário que destituiu seres-humanos de direitos para assassiná-los metodicamente sob a proteção da lei que o relatório final da CPI em curso no Senado insiste em comparar os gestos do presidente da República durante a pandemia. 

Acreditem ou não os envolvidos nessa narrativa macabra, nenhum governo do mundo detém o poder de controlar a difusão de micro-organismos através do globo. Justamente por isso, a pandemia gerou estado de alerta e sua gestão foi, internacionalmente, marcada por inúmeros erros, frutos das tentativas de cada governo. No Brasil, coube a prefeituras e Estados definir decretos que regulassem o comportamento individual ao longo do processo. À União, coube liberar orçamento aos Estados e prover ao Sistema Único de Saúde insumos, instrumentos e medicamentos úteis ao trabalho médico. Isso foi feito. Há documentos indicando quando e como. O argumento do “atraso na vacinação” é fraco e só interessa ao pré-candidato à Presidência em 2022 que começou a vacinar em seu Estado três semanas antes da vacinação nacional. 

Rixas políticas fizeram da pandemia um palco de pré-campanha. O autoritarismo de muitas medidas sanitárias veio de prefeituras e governos, se cabe debater o risco de flerte com totalitarismos de outrora… Mas grave mesmo foi a inadmissível banalização das 6 milhões de vidas arrancadas ao povo judeu por uma deliberação legalmente amparada. Num cálculo político mesquinho, o Senado brasileiro decidiu esquecer o trabalho heroico da Mossad e do Estado de Israel em ter feito do julgamento de Adolf Eichmann, o arquiteto do Holocausto, um símbolo de defesa mundial da dignidade humana diante da imoralidade mais grotesca, mesmo que oculta sob o manto furado do legalismo. Não tem perdão.

*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.

Comentários

Conteúdo para assinantes. Assine JP Premium.