Diretora-geral da Oxitec no Brasil, Natalia Ferreira associou experiência de cientista à gestão
Mãe de duas meninas, ela deseja deixar a sua marca no mundo e entregar uma ferramenta simples e poderosa que possa mudar a realidade das doenças causadas pelo Aedes aegypti no Brasil
Nossa Mulher Positiva desta semana é Natalia Ferreira, diretora-geral da Oxitec do Brasil. Ela nos conta como trilhou um caminho incomum, mas promissor, ao associar as suas experiências de cientista à gestão de uma empresa inovadora e disruptiva. Formada em biologia, Natalia ingressou no doutorado e no pós-doutorado, com o objetivo de “se tornar uma cientista de verdade”. Em 2016, no auge do surto do zika vírus, ela foi tomada novamente pela vontade de fazer algo novo e se colocou à disposição como voluntária para pesquisar doenças causadas pelo mosquito Aedes aegypti. Depois de alguns anos, chegou à posição de diretora-geral no Brasil da companhia Oxitec, atuando em contato direto com o CEO global. Atualmente, seu sonho é mudar essa realidade das enfermidades transmitidas pelo mosquito, com a qual já nos acostumamos no Brasil. “Desejo deixar a minha marca no mundo – e que ela vá além de duas filhas sensíveis e corajosas”, afirma.
1. Como começou a sua carreira? Venho de uma família com forte inclinação para a área de Humanas, com um pai economista e uma mãe professora do ensino fundamental. Mas, desde a adolescência, eu sempre ficava fascinada com notícias sobre ciência, sobre criar algo novo a partir de uma ideia. Ficava imaginando como aquela mágica acontecia — o dia a dia de experimentos, aquele momento “Eureka!” que poderia transformar realidades se conseguisse sair do laboratório e, de alguma forma, se tornar acessível a toda população. Eu tinha 17 anos e já havia decidido me aventurar por essa jornada, quando ocorreu o anúncio do primeiro clone na história, a ovelha Dolly. Naquele momento, vendo a reportagem na televisão, pensei: “É isso. Esse é o futuro, uma engenharia da biologia para resolver problemas reais”. As possibilidades eram infinitas na cabeça de uma jovem idealista.
Pesquisei um pouco e descobri que aquilo se chamava Engenharia Genética, e que ainda não existia como curso de graduação no Brasil. Escolhi, então, a biologia, pela amplitude que a área oferecia como um primeiro passo. A partir daí, foi um caminho sem volta. Me formei e logo ingressei no doutorado em Genética e Biologia Molecular e, em seguida, em um pós-doutorado em Biotecnologia com o objetivo de me tornar uma cientista de verdade – e só existe um jeito: formulando hipóteses, fazendo experiências controladas para testá-las, errando, acertando, observando, concluindo, reformulando a hipótese inicial, recomeçando inúmeras vezes, desafiando a mim mesma, eliminando os vieses, dividindo as ideias com os pares, até chegar a uma história robusta e à prova de porquês para ser contada na forma de um artigo científico publicado. Descobri que o momento “Eureka!” é feito de milhares de luzinhas que se acendem aos poucos, todos os dias, até que se possa ver por inteiro. E que ser cientista é, antes de tudo, ser resiliente.
Durante todo esse processo, que durou pouco mais de uma década, meu pensamento se voltava todo momento a uma frase que ouvi do saudoso professor Leopoldo de Meis, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ): “Como seria bom se fosse permitido a cada especialista trabalhar também na claridade dos demais”. Percebi que era hora de usar todo aquele conhecimento para finalmente construir algo novo, inédito no mundo. Ingressei em uma empresa de biotecnologia do Vale do Silício, que tinha como missão usar açúcar como matéria-prima para produzir energia limpa – diesel, gasolina, querosene de aviação feitos da cultivação a partir de leveduras engenheiradas ainda além do etanol. Ajudei a criar tudo do zero – laboratórios, pessoas, ideias e a primeira biofábrica. E esse foi um importante ponto de inflexão, quando compreendi que a minha vontade de fazer a diferença através da ciência também podia ser transmitida às funções corporativas. Eu tinha plena capacidade de liderar talentos, engajá-los nesse mindset e trazer pesquisas que muitas vezes ficavam somente na academia, para o dia a dia de muitos, devolvendo conhecimento à sociedade.
Naquele momento, a área de biotecnologia já estava consolidada no mundo e oferecia muitas oportunidades fora do Brasil, tanto de formação quanto de trabalho. Mas, contrariando as tendências, ou melhor, apostando nas minhas raízes, resolvi manter a minha atuação no País. Nesse meio tempo, passei por algumas empresas e atuei em projetos inovadores, como produzir teia de aranha em soja e aplicá-la na blindagem de aviões e EPIs, e no desenvolvimento de um milho rico em um determinado aminoácido essencial, o que ajudaria países africanos no combate à fome. Foram escolhas e movimentos sem um caminho pré-definido, mas conduzido por um propósito, que carregava todo aquele fascínio inicial da adolescência e das descobertas afloradas ao longo do tempo. Ficou claro, porém, que eu precisava promover engajamento. Nesse sentido, era evidente que o impacto que eu desejava só seria alcançado ao lado de pessoas que colaboraram e acreditassem no mesmo fio condutor.
E, justamente por esse ímpeto colaborativo e a consciência de onde eu queria e poderia chegar, acabei encontrando a subsidiária da Oxitec no Brasil, no auge do surto de zika vírus, em 2016. Eu havia dado à luz a minha segunda filha e me vi de novo em frente à televisão, assistindo ao sofrimento das mães e seus bebês com microcefalia. Eu tinha que fazer algo. Me lembrei, ali, de uma startup de biotecnologia que atuava no desenvolvimento de uma tecnologia capaz de controlar o mosquito Aedes aegypti, transmissor do zika, da dengue, chikungunya e febre amarela. Telefonei para amigos que conseguiram me colocar em contato com o CEO da companhia na Inglaterra e me coloquei à disposição como voluntária para auxiliá-los na tradução da ciência às necessidades de gestores municipais e da comunidade. Depois de um ano como voluntária, já apaixonada pela missão, me juntei à Oxitec e, após cinco anos e alguns bons desafios, cheguei à posição de diretora-geral no Brasil, atuando em contato direto com o CEO global. Com essa metamorfose — já que, na maioria das vezes, não passa pela cabeça de um profissional da ciência se tornar um líder — minha maior filosofia ao fazer gestão de pessoas é fazê-las acreditarem nelas mesmas. Ainda utilizo o método científico em todas as searas da minha vida. Formulo hipóteses, busco dados, questiono conclusões mediante evidências e, com isso, me mantenho aberta a ouvir, aprender, mudar conceitos, convicções e a não ter verdades prontas.
2. Como é formatado o modelo de negócios da Oxitec? A Oxitec é uma empresa de biotecnologia pioneira em soluções biológicas para o controle de pragas que transmitem doenças e destroem plantações e rebanhos. Ela surgiu em 2002, na Universidade de Oxford, e ao longo dos últimos 20 anos realizou inúmeros projetos-piloto para aperfeiçoar a Tecnologia do BemTM e torná-la escalável e acessível a todos. Em linhas gerais, a empresa oferece soluções comprovadas e aprovadas pelo órgão regulador brasileiro – a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) — para o controle do mosquito Aedes aegypti, transmissor da dengue, zika, chikungunya e febre amarela, e para a lagarta-do-cartucho-do-milho (Spodoptera frugiperda), que prejudica a produtividade de plantações.
Trata-se de um modelo de negócio inovador e disruptivo, já que atua na causa de problemas de saúde pública e segurança alimentar com base em uma única tecnologia, que pode ser aplicada em uma variedade de insetos. Neste momento, nossos cientistas também atuam no desenvolvimento de soluções para o controle do mosquito transmissor da malária e de pragas que afetam as lavouras de soja, fruticultura e hortaliças, bem como da pecuária. Trabalhamos em parceria com grandes companhias, como a Bayer e a Clin Global, e também recebemos importantes investimentos de entidades filantrópicas globais, entre elas a Fundação Bill & Melinda Gates e o Wellcome Trust.
3. Qual foi o momento mais difícil da sua carreira? A transição da academia para a iniciativa privada foi uma estrada bastante turbulenta, já que tudo é muito diferente: ao mesmo tempo em que se tem muito mais recursos, existe também o desafio do trabalho em equipe, do foco no resultado e não apenas no conhecimento, das barreiras culturais e de comunicação com os colegas da empresa em outros países, tudo isso associado ao estímulo de migrar da área puramente científica para a gestão, da adaptação de aprendizados técnicos a um novo mundo. Esse foi um momento difícil, mas não intransponível. Acredito muito na capacidade que cada um tem de se moldar a novas situações sem nunca perder a sua essência, e faço disso um exercício diário junto à equipe.
Eu sou extremamente empática e acredito na gentileza e no amor em todas as relações. Tive a vantagem de começar como líder de equipes em que a maioria das profissionais eram mulheres, e pude exercer a minha liderança com empatia, amor, emoção e significado sem maiores julgamentos. A maioria dos meus gestores, no entanto, eram homens, e lógico que já recebi feedbacks para não ser tão emocional, e sim mais objetiva. A maturidade profissional nos guia à escuta ativa e à absorção daquilo que realmente faça sentido às nossas características e aspirações. Então, fui incorporando aquilo que me tornava uma líder melhor. A forma com que faço a gestão é um convite à humanidade e à demonstração de sentimentos, à coragem e à resiliência, sem medo de errar – afinal, são os erros que nos levam à excelência.
4. Como você consegue equilibrar sua vida pessoal x vida corporativa/empreendedora? Eu, como muitas mulheres, busco a realização nos diversos âmbitos que me proponho a estar. No que tange a vida profissional, somente aceitei o compromisso de ser a diretora-geral de uma empresa por confiar em sua missão e visão sabendo que faço parte de uma grande transformação social, favorecendo a vida das pessoas e construindo um futuro melhor para todos. É a questão do propósito, daquilo que faz sentido e pode reverberar positivamente. Ensino isso às minhas filhas e as estimulo a não se melindrarem por pressões ou rótulos que a sociedade as impõe. Ninguém deve ser impedido de tentar, de ter sonhos, de aspirar e lutar por algo que a maioria julga impossível.
5. Qual seu maior sonho? Como toda mãe, desejo ver minhas filhas alcançarem tudo aquilo que desejarem. Desejo estar ao lado delas e celebrar cada pequena ou grande conquista, assim como hoje elas comemoram as minhas. Mas desejo, também, deixar a minha marca no mundo – e que ela vá além de duas filhas sensíveis e corajosas. Acredito que na Oxitec eu conseguirei entregar para todos os que precisam uma ferramenta muito simples e muito poderosa para mudar algo com que no Brasil já nos acostumamos: as doenças causadas pelo Aedes aegypti, que são tão recorrentes, mas já têm uma solução. Minha missão é entregá-la à sociedade.
6. Qual sua maior conquista? Quando penso em conquista, a vejo de forma plural. No âmbito profissional, me orgulho muito do caminho percorrido e do legado construído junto a inúmeras mãos. Digo isso porque migrar dos laboratórios e da academia para o meio corporativo também foi uma forma de influenciar, engajar e mostrar possibilidades de carreira na iniciativa privada a tantos jovens cientistas. Consigo contar mais de 100 deles que contratei, muitos em seu primeiro emprego, e que fizeram a diferença nas equipes que liderei. Tenho orgulho de mostrar que o caminho da ciência corporativa existe, é algo passível de realizar, e traz ainda mais esperança à solução de problemas complexos que impactam a sociedade. Além disso, não posso deixar de reforçar que, no âmbito pessoal, meu projeto de maior sucesso, no qual trabalho diariamente, é a minha família. Afinal, juntos conseguimos responder a vários porquês e auxiliar uns aos outros em nossa evolução enquanto pessoas e cidadãos.
7. Livro, filme e mulher que admira. Livros são tantos! É meu hobby preferido, leio um por semana, todos ficção. Dos mais recentes, cito “Como Parar o Tempo”, de Matt Haig, que me fez pensar sobre o que é ser imortal. Filmes geralmente assisto para descontrair e, atualmente, estou mais conectada às séries. Uma delas é Gilmore Girls, que além de me inspirar em tantos níveis, tive a oportunidade de reassistí-la nesta pandemia com a minha filha mais velha. Mulher diria Audrey Hepburn, por sua história de vida durante a guerra, de nunca se render, pela dedicação ao ballet – minha paixão – e por não se contentar com o que já era uma carreira impressionante e ainda se tornar embaixadora da Unicef ao se dedicar ao trabalho humanitário de corpo e alma.
*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.
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