No Rio de Janeiro, o saneamento está à espera da universalização

Se bem planejadas e desenhadas, as concessões serão ferramentas poderosas para estimular a eficiência na operação do serviço e viabilizar investimentos na universalização para que o Brasil supere a precariedade do saneamento

  • Por Fernando Vernalha
  • 24/01/2021 08h00
Divulgação/CEDAE Estação de Tratamento de Água (ETA) do Guandu, no Rio de Janeiro

Em meio a uma nova crise da água no Rio, que levou há poucos dias à interrupção do funcionamento da Estação de Tratamento do Guandu pela CEDAE, cresce a relevância do processo de desestatização do saneamento no estado. Já publicado, o edital da licitação da prestação regionalizada do saneamento do estado do Rio de Janeiro promete atrair investidores e operadores nacionais e internacionais. Trata-se do maior projeto de infraestrutura do país, que propõe ampliar a cobertura de esgotamento sanitário e de distribuição de água para diversos municípios fluminenses. Serão quatro grandes concessões, voltadas a explorar um pedaço relevante do saneamento no estado. No desenho proposto, a CEDAE, que atualmente opera o serviço na maioria dos municípios do estado, não será privatizada, mas redimensionada. Para funcionar no contexto da prestação regionalizada, a empresa terá seu escopo reduzido aos serviços de produção da água (upstream), encarregando-se de fornecer o insumo aos quatro novos operadores privados para a sua distribuição dentro da área da concessão. É um desenho inovador, que pretende transformar a ineficiência operacional existente em investimentos na universalização do serviço, a partir da transferência de sua gestão a operadores privados.

Os números apresentados pelos estudos do projeto e divulgados pelo estado impressionam. Mantendo-se o valor atual da tarifa, as concessões viabilizarão um volume imenso de investimentos com vistas a ampliar a universalização, alcançando, até o final de 35 anos de contrato, 99% de cobertura de distribuição de água e 90% de cobertura de esgotamento sanitário. Além disso, há uma série de indicadores de desempenho previstos nos contratos de concessão, com impacto na redução da receita percebida pelos concessionários, que se prestam a induzir o incremento da qualidade e da disponibilidade dos serviços aos usuários. Todos estes indicadores, acompanhados de uma matriz de obrigações e de riscos bem definida, tenderão a viabilizar uma operação muito mais eficiente do que a atual, abrindo caminho para investimentos na universalização. Comparativamente ao modelo estatal, as concessões também permitirão um maior controle social sobre a prestação do serviço, particularmente quanto ao cumprimento das metas e obrigações impostas às concessionárias e detalhadas nos contratos.

O grande desafio do projeto, para além de sua dimensão, é a sua multilateralidade. Trata-se de uma operação conduzida pelo estado do Rio, mas cuja titularidade dos serviços ou é municipal ou é da região metropolitana já instituída (e aqui há uma tendência em se admitir que, no contexto da região metropolitana, o estado também seja o titular dos serviços, como bem me foi advertido por Larissa Casares). Isso exigiu o estabelecimento de uma série de relações interfederativas – entre o estado e os municípios e entre o estado a região metropolitana – com o objetivo de delegar ao estado o conjunto de atribuições necessárias para a delegação da prestação do serviço e para a gestão dos contratos no longo prazo. Estas relações estão bem costuradas no projeto, compondo um modelo jurídico-institucional apto a legitimar o estado a organizar e gerir a prestação regionalizada. É um desenho que provavelmente inspirará os projetos de operação regional no Brasil daqui em diante.

Afinal, o novo marco legal de saneamento tem entre suas principais diretrizes a regionalização. É natural que os estados, como atores institucionais com ascendência sobre os municípios, liderem a criação dos arranjos regionais. Uma outra manifestação desta multilateralidade é o necessário inter-relacionamento entre os concessionários, que integrarão o mesmo sistema de abastecimento de água para a prestação regionalizada. Trata-se de outro desafio do projeto, mitigado por meio de uma robusta estrutura de governança para disciplinar o relacionamento entre os operadores. O projeto da prestação regionalizada do saneamento do estado do Rio simboliza um novo capítulo da história do saneamento básico no país, em que o esforço associativo entre municípios e estados dará origem a concessões regionais. Bem demarcada e planejada, a regionalização será apta a democratizar o acesso à universalização, permitindo que subsídios cruzados viabilizem a prestação do serviço com tarifas módicas em municípios menores e menos populosos. Da mesma forma, bem planejadas e desenhadas, as concessões serão ferramentas poderosas para estimular a eficiência na operação do serviço e viabilizar investimentos na universalização. Trata-se de um modelo absolutamente necessário para a superação da precariedade do saneamento no Brasil.

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