Reforma da lei de improbidade é um avanço, não um retrocesso

Atualização delimita de modo mais preciso as hipóteses que configuram violações a princípios da Administração Pública, exigindo-se a comprovação da intenção do agente em alcançar o resultado ilícito

  • Por Fernando Vernalha
  • 17/10/2021 08h00
Cleia Viana/Câmara dos Deputados Plenário da Câmara dos Deputados, Ricardo Barros ao microfone Projeto que altera a lei de improbidade administrativa foi aprovado na Câmara no dia 6 de outubro e aguarda sanção presidencial

Aguarda a sanção presidencial o projeto de lei que propõe atualizações importantes na legislação sobre a improbidade administrativa. Dentre as novidades mais controversas está o fim da chamada “improbidade culposa”. Segundo a proposta, a caracterização das práticas de improbidade passará a depender da demonstração da intenção do agente em alcançar o resultado ilícito (dolo). Outra inovação polêmica é a tipificação exaustiva das hipóteses de violação a princípios da Administração Pública como atos de improbidade, tornando a caracterização do ilícito menos abstrata. O projeto tem sido criticado especialmente sob o argumento de que a exigência de demonstração do dolo para a configuração da improbidade dificultaria muito as condenações, retirando a efetividade da legislação de improbidade no combate aos ilícitos. O que se teme é que esta atualização provoque um afrouxamento do combate à corrupção e aos desvios.

As inovações propostas me parecem positivas e devem contribuir para trazer maior certeza e segurança jurídicas na aplicação da lei em casos concretos. O que temos visto historicamente é um alargamento do conceito de improbidade, que passou a abarcar ilícitos de diversas naturezas, muitos deles cometidos de modo culposo, sem a intenção de alcançar o resultado ilícito. Isso levou a uma distorção relevante no funcionamento do sistema de improbidade: as penas graves de improbidade – graves porque associadas a práticas de desonestidade – passaram a ser aplicadas eventualmente a gestores públicos bem intencionados, por adotarem decisões de política pública ou interpretações jurídicas diversas daquelas escolhidas pelo Ministério Público ou pelo juiz. Mas as práticas de improbidade não podem ser equiparadas a meros ilícitos. Muito menos a atos do gestor público que retratam interpretações jurídicas plausíveis ou escolhas políticas razoáveis, ainda que diversas daquelas preferidas pelo controlador.  

Como a legislação atual admite a prática de improbidade por mera “violação aos princípios da Administração Pública”, uma ampla discricionariedade judicial se abriu para o reconhecimento da improbidade nos casos concretos. Princípios são normas que veiculam conceitos e valores abstratos – como moralidade e razoabilidade etc -, dando ensejo a múltiplas interpretações. Pois a maioria das ações de improbidade tem sido ajuizada com fundamento em atos de violação a princípios, e não em práticas de enriquecimento ilícito ou de lesão ao Erário. Isso vem ensejando a aplicação das graves penas de improbidade a agentes públicos que tiveram a infelicidade de adotar interpretações diversas daquelas que prevaleceram nos órgãos de controle, em muitos casos sem má-fé ou a intenção de cometer o ilícito. Este estado de coisas contribuiu para a disseminação do fenômeno do “apagão das canetas”, provocando a retração do gestor público. Expostos ao risco jurídico de ser condenado por ato de improbidade, os agentes públicos passaram a evitar decisões heterodoxas ou que possibilitassem uma pluralidade de interpretações, ainda quando estas decisões lhes parecessem as mais adequadas para atender ao interesse administrativo. Isso gerou uma crise decisória na Administração Pública, com prejuízos à eficiência da ação estatal.

As atualizações propostas pela reforma da lei de improbidade pretendem evitar situações como essas, delimitando de modo mais preciso as hipóteses que configuram violações a princípios, exigindo-se, em qualquer caso, a comprovação da intenção do agente em alcançar o resultado ilícito (o dolo). Não me parece cabível o argumento de que isso dificultará condenações, ante as dificuldades de provar a intenção de agir do agente infrator. A demonstração desta intenção já é exigida em muitos casos, especialmente no âmbito da responsabilização criminal. Lembre-se que a operação Lava Jato produziu resultados efetivos no combate à corrupção sem se desincumbir do ônus de demonstrar o dolo. Essa é, enfim, uma comprovação necessária, sob pena de flexibilizarmos a régua da improbidade e, com isso, submetermos bons administradores às sanções da desonestidade. Algo que, infelizmente, tem-se visto historicamente. Com a reforma, finalmente, essa distorção tenderá a ser corrigida.

*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan

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