Obsessão com minorias transforma séries da Netflix em panfletos politicamente corretos

Se antigamente os personagens proibidos eram gays ou mulheres sem filhos, hoje chegamos ao oposto do pêndulo, uma situação igualmente simplista

  • Por Leandro Narloch
  • 26/10/2020 15h44
Reprodução/YouTube Série "A Maldição da Mansão Bly" tem um romance lésbico na trama

Em 1932, a escritora Rachel de Queiroz teve uma reunião um tanto cômica com colegas integrantes do Partido Comunista do Rio de Janeiro. Dirigentes haviam lido os originais do novo livro dela, “João Miguel”, e decidiram exigir mudanças para que a história ficasse “mais marxista”. Os personagens pobres deveriam ser boas pessoas; os ricos, os vilões da história. “Por exemplo: uma das heroínas, moça rica, loura, filha de coronel, era uma donzela intocada. Já a outra, de classe inferior, era prostituta. Eu deveria, então, fazer da loura a prostituta e da outra a moça honesta. João Miguel, ‘campesino’, bêbedo, matava outro ‘campesino’. O morto deveria ser João Miguel, e o assassino passaria de ‘campesino’ a patrão”, conta Rachel em sua autobiografia. 

A escritora considerou os pedidos risíveis, abandonou a reunião sem abrir a boca e nunca mais se envolveu com comunismo. Recusou-se a submeter sua história ao proselitismo ideológico, recusou a ideia de que a arte deve ser instrumento didático para alguma revolução. Lembrei dessa história tentando entender o que está me incomodando nas séries da Netflix. “A Maldição da Mansão Bly”, “Ratched”, “Good Girls”, “Gipsy”, “As Telefonistas”: quase todas elas embutem personagens compatíveis com a ideologia da moda. Todas parecem atender aos requisitos impostos pelo canal de incluir lésbicas, jovens transexuais, minorias em geral, mulheres assumindo cargos de liderança antes reservados a homens, mulheres descobrindo que os homens são desnecessários. 

Não são esses personagens que me incomodam (não é exatamente ruim ver lésbicas protagonizando cenas quentes). O que incomoda é o proselitismo embutido no roteiro. As séries parecem se basear na mesma visão da arte instrumental e panfletária que os dirigentes do Partido Comunista exigiram de Rachel de Queiroz. Se antigamente os personagens proibidos eram gays ou mulheres sem filhos, hoje chegamos ao oposto do pêndulo, uma situação igualmente simplista. O homem líder e a dona de casa contente com sua família tradicional são os novos personagens problemáticos e transgressores. As senhoras carolas do passado, que viviam querendo proibir o que contrariava a moral e os bons costumes, mudaram de roupa e corte de cabelo. Hoje têm óculos coloridos e selecionam somente o que é abertamente feminista ou que não reproduza estereótipos heteronormativos. O sinal trocou, mas a obsessão careta com a “arte para o bem”, que escandalizou Rachel de Queiroz em 1932, continua a mesma.

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