‘Nomadland’ transforma hábito americano em política socioeconômica

Dezenas de filmes já exploraram o cenário de viagens em vans pelo vasto território americano; a produção dirigida por Chloé Zhao com Frances McDormand no elenco, no entanto, se revela panfletária e político-partidária

  • Por Marcos Petrucelli
  • 15/01/2021 10h00
IMDB/Reprodução Em 'Nomadland', uma mulher de meia-idade, viúva, decide dirigir sua van por um território sem fim e sem destino

Por mais que se tente fugir do assunto e, em boa parte das vezes, negar as evidências, é notória a existência de um cinema engajado, panfletário e político-partidário. É impossível não enxergar essas características em “Nomadland”, que ganhou destaque em alguns dos festivais de cinema mais importantes, como Toronto e Veneza, elevando a produção ao status de possível candidata e até mesmo ganhadora do Oscar em 2021. Elementos cinematográficos e narrativos, daqueles bem apreciados pela Academia, não faltam: um road movie (ou filme de estrada), “Nomadland” passeia por uma América de neve intensa nas montanhas e calor infernal do deserto, fotografa cenários pujantes e decadentes, apresenta personagens díspares e suas complexidades. A história é de uma mulher de meia-idade, viúva, que decide dirigir sua van por um território sem fim e sem destino. Ao longo do caminho, descobre outras pessoas que também escolheram experimentar o mesmo estilo de vida desregrada, sem amarras, portanto livres, mas sem um objetivo definido.

Pontuo alguns dados interessantes e reveladores: “Nomadland” é dirigido por Chloé Zhao, nascida em Pequim e que, segundo consta em sua biografia, era uma jovem rebelde e influenciada pela cultura Pop ocidental. Assim, abandonou a China e, após viver um tempo em Londres, radicou-se nos Estados Unidos e atualmente vive em Los Angeles. Não há explicação razoável que justifique alguém deixar uma das mais controladas ditaduras comunistas no planeta, mudar-se para um país da mais plena democracia e meca do capitalismo moderno, para fazer um gênero de cinema que critica justamente o modelo que ela buscou. Mas existe um lado divertido em tudo isso: como é frequente no chamado discurso progressista, o resultado é invariavelmente um tiro no próprio pé. Chloé Zhao conta em seu elenco com a premiada atriz Frances McDormand, bastante conhecida em Hollywood por sua chatice militante. Num primeiro momento, o filme nos faz querer acreditar que Fern (personagem de Frances) é uma vítima da uma sociedade, liderada por um tipo de governo cruel e injusto, que não lhe dá oportunidades. O espectador ficará em dúvida, no entanto, quando, num encontro dentro do supermercado, Fern conversa com alguém muito próximo dela (é sua irmã, uma parente qualquer?), e que lhe oferece todo o amparo de que porventura necessita. Fern parece decidida a dar um rumo diferente em sua vida e renuncia a tal ajuda.

Mais à frente, entra na história o simpático personagem Dave, interpretado pelo sempre eficiente David Strathairn. Dave também é um dos nômades que guia sua van para todos os cantos. A aproximação entre ele e Fern é gradual. Chegamos a torcer que o romance entre eles se consuma. Dave, que decidiu em dado momento abandonar a vida de romeiro e voltar a viver na bela fazenda da família, ao lado dos netos e inúmeros bichos, chega a convidar Fern a viver com ele naquele conforto. Mais uma vez ela declina, assim como novamente – em outro momento a seguir – abrirá mão de voltar a morar em sua própria casa, optando por passar seus dias como peregrina e, vez ou outra, fazer algum trabalho temporário como empacotadora da Amazon. Fica bastante óbvio, portanto, que se trata apenas de escolhas; não da circunstância em que a personagem se encontra e muito menos por conta de uma imposição do sistema, numa referência ou analogia da América atual.

Todo cinéfilo que se preze já deve ter assistido a uma dezena, senão centenas de filmes sobre a jornada de personagens pela vastidão americana dirigindo suas vans, estacionando aqui e ali, apenas como forma de vivenciar uma nova experiência. É até possível afirmar que a van é praticamente uma instituição na família americana. Mas “Nomadland”, na tentativa de apontar o dedo para denunciar uma suposta desigualdade diante da vilania letal de um mundo corporativista e capitalista, acaba somente transformando um hábito secular num vazio discurso político socioeconômico. Saudades dos tempos em que Hollywood nos oferecia apenas um entretenimento divertido, em que uma viagem de van só tinha como objetivo nos mostrar as férias frustradas de Chevy Chase.

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