Há algo que justifique a realização das Olimpíadas durante a pandemia?

Diferente de outros eventos artísticos, esportivos, econômicos e sociais, os Jogos estão acontecendo, com mudanças de prioridades na vacinação, como destinação de doses a atletas saudáveis

  • Por Mônica Magalhães
  • 01/08/2021 08h00
EFE/ Enric Fontcuberta Pessoas se manifestando contra os Jogos Olímpicos Manifestação contra os Jogos Olímpicos reuniu dezenas de torcedores em frente ao Estádio Olímpico de Tóquio, palco da cerimônia de abertura

Após um ano de adiamento e, apesar de protestos do povo japonês, os Jogos Olímpicos de 2020 estão acontecendo. A pandemia da Covid-19 ainda corre solta mundialmente, e a variante Delta se mostra altamente transmissível. A vacinação mal começou nos países mais pobres e está progredindo lentamente na grande maioria dos demais — inclusive no Japão, onde menos de 30% da população está imunizada. O Comitê Olímpico Internacional (COI) não tornou as vacinas obrigatórias para atletas e demais membros das delegações, mas as incentivou. Diversos países, inclusive o Brasil, anteciparam a imunização dos participantes. Como resultado, mais de 85% dos atletas e equipe hospedados na Vila Olímpica estão vacinados, segundo o COI. Mesmo antes da pandemia, os Jogos Olímpicos já eram frequentemente criticados por causar o direcionamento de recursos públicos para obras, infraestrutura e serviços que servem às prioridades dos jogos, e não as necessidades da população da cidade anfitriã. É questionável se sediar os jogos traz retornos — financeiros ou mais intangíveis — para a população local.

Com a emergência da Covid-19, as doses de vacina se tornaram mais um exemplo: usadas para imunizar atletas (e treinadores, oficiais, membros da mídia, funcionários e voluntários) saudáveis no início de 2021 teriam, sem os jogos, ido para grupos mais vulneráveis. Unidades doadas pela Pfizer ao COI também poderiam ter ido para os programas nacionais de tantos países que ainda estão esperando. Importante frisar: se milhares de pessoas do mundo todo vão convergir em uma cidade densamente povoada e pouco vacinada, em condições que nem sempre permitem o distanciamento social, faz sentido desviar uma quantidade relativamente pequena de vacinas para mitigar o enorme risco à saúde pública global. O que não faz muito sentido é a própria realização das Olimpíadas. Há mais de um ano, todo tipo de eventos e atividades esportivas, artísticas, econômicas e sociais foram interrompidas ou restritas. Há algo que justifique o tratamento diferente dos Jogos, desde a própria existência de um megaevento internacional em plena pandemia, até as mudanças nas prioridades de vacinação para viabilizar este evento em particular?

O COI não remunera os atletas, então a justificativa não pode ser o sustento dos melhores do mundo. Para aqueles da maioria das modalidades esportivas, os Jogos são a principal oportunidade de competir e demonstrar excelência nos esportes aos quais se dedicam integralmente. Perder esta oportunidade é uma perda importante, mas não é única, é parecida com a sofrida por outros praticantes de atividades coletivas que foram interrompidas pela pandemia, como apresentações e festivais de música ou dança, cujos artistas perderam tanto a fonte de renda quanto a chance de praticar sua arte com excelência. As perdas dos amantes do esporte também são parecidas com as perdas sofridas pelos amantes, por exemplo, das artes. Há interesses econômicos dos comitês olímpicos, patrocinadores, e demais envolvidos, mas grande parte da atividade econômica mundial teve de parar ou ser reduzida por causa da pandemia. Não há motivo óbvio para priorizar estes interesses econômicos, e não tantos outros possíveis. Pode ser que a justificativa seja um interesse geral em estimular uma aproximação entre diferentes países e culturas. Talvez no passado as Olimpíadas servissem a esse propósito, mas no mundo atual, de comunicações instantâneas e informação, cultura e até entretenimento cada vez mais globalizados, um evento que acontece a cada quatro anos parece irrelevante para este objetivo. Em 2021, o controle da pandemia, que não é possível dentro de apenas um país, é uma bandeira mais importante.

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