O que há de tentador no ‘imposto do pecado’, incluído em uma atual proposta da reforma tributária?

Termo se refere a taxas cobradas sobre produtos como cigarro, bebidas alcoólicas e refrigerantes; proposta é criticada como moralista ou como manifestação do ‘Estado-babá’ que infantiliza o cidadão

  • Por Mônica Magalhães
  • 10/10/2021 08h00
Pixabay Homem fumando cigarro Imposto incidiria sobre produtos considerados prejudiciais à saúde, como cigarros e bebidas alcoólicas

Uma atual proposta de reforma tributária inclui a criação do chamado “imposto do pecado”. Tradicionalmente, o termo se refere a impostos cobrados especificamente sobre produtos como cigarro, bebidas alcoólicas, refrigerantes, doces, etc. Mais recentemente, o nome também pode se aplicar ao “imposto verde”, cobrado sobre produtos que causam danos ao meio ambiente, como derivados do petróleo. É uma proposta eternamente polêmica, criticada como moralista ou como uma manifestação do “Estado-babá” que infantiliza o cidadão. Mas a ideia vem à baila repetidamente, em muitos países, em diferentes contextos, sugerindo que há algo de importante ou atraente na possibilidade. O que pode ser?

O nome “imposto do pecado” sugere a intenção de combater certos atos, ou certos tipos de consumo, porque são errados, porque ofendem senso religioso ou moral. O nome claramente não revela a verdadeira justificativa. Talvez “imposto paternalista” seja um nome mais indicativo das causas do interesse e da oposição à ideia. Ao desincentivar o consumo do que mata ou engorda, o imposto faz o que é melhor para você, mesmo que você não queira. Ou seja, limita a sua liberdade, mas para o seu próprio bem⁠ — a definição do paternalismo. Muitos não concordam com leis paternalistas. Na linha do filósofo liberal inglês John Stuart Mill, só se pode restringir a liberdade individual quando o exercício dessa liberdade faz mal a terceiros. Se a fumaça do cigarro de um faz mal aos outros, um adulto ciente dos riscos pode, no mínimo, fumar sozinho em casa. (Uma dificuldade que até Mill reconhece é que, para uma escolha ser livre e voluntária, é preciso entender os riscos. Ainda evitando restrições à liberdade, a solução tradicional é dar um aviso: “fumar é prejudicial à saúde”, ou informações nutricionais nas embalagens de alimentos.) Outra dificuldade com a linha liberal tradicional, e talvez uma explicação melhor para a incidência destes impostos sobre cigarros, álcool, e comidas ultraprocessadas formuladas para nos levar a comer mais, seja justamente a capacidade destes produtos, em alguma medida, em nos viciar ⁠— e não, afinal, sua imoralidade. Como fica a liberdade ou a autonomia quando o ato de consumir um produto altera o que queremos e o que preferimos?

Um fumante, por exemplo, pode querer muito um cigarro no momento, mas ao mesmo tempo pensar que preferiria parar de fumar. Ou seja: se pudesse, preferiria ter outras preferências. Teríamos então um “imposto de Ulisses”, que ao dificultar que você siga suas preferências imediatas, tornando um cigarro ou um refrigerante menos atraentes, te ajuda a seguir (e, assim, a formar) as preferências que você preferiria ter. Ou seja, o imposto faz o que é melhor para você, e o que você realmente quer. Beber ou fumar menos não é o que você quer na hora, usando o pensamento “rápido”, intuitivo e impulsivo descrito pelo psicólogo Daniel Kahneman. Mas é o que você quer quando usa o raciocínio frio e lógico, o pensamento “lento” de Kahneman. Como na história de Ulisses, que, pensando “lento,” se fez amarrar para não ser levado a seguir as sereias pelo pensamento “rápido”. (A mesma lógica recomenda a mudança dos avisos escritos para imagens chocantes nos maços de cigarro, ou das informações numéricas para as cores do semáforo nas embalagens de alimentos: entender que fumar faz mal à saúde, ou que este biscoito tem 100 calorias por unidade, exige o pensamento “lento”, mas o pensamento “rápido” reage instintivamente a uma foto nojenta, ou a cores já associadas com pare/atenção/prossiga.)

Ou talvez o que haja de atraente nesse tipo de imposto nada tenha a ver com o bem da pessoa que o paga, e ele seja de fato um “imposto sobre externalidades” que faz o que é melhor para a coletividade, sendo ou não melhor para você. O consumo de produtos prejudiciais à saúde impõe custos à sociedade (as chamadas externalidades, em economês), como o custo monetário dos tratamentos, ou o custo social da sobrecarga do sistema. E os impostos seriam uma forma de reduzir as externalidades, seja desencorajando o consumo ou ressarcindo os cofres públicos. Vistos por essa lente, esses impostos não são, afinal, paternalistas: não se justificam porque são para o seu bem, mas sim para evitar impor males sobre terceiros. O “imposto verde” se encaixa mais naturalmente nesta última categoria. Não é individualmente para o bem de cada indivíduo parar de usar, por exemplo, derivados de petróleo, mas evitar os custos sociais da continuação de seu uso excessivo é do interesse de todos. Seja ele aceitável ou não, tentador ou não, está claro que o “imposto do pecado” pode ter mais efeitos do que salvar nossas almas via reforma tributária.

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