Combate ao preconceito contra a transsexualidade não pode desrespeitar a liberdade
Há uma tentativa de normalização da transsexualidade; pessoas trans sofrem preconceito, mas a revolta não pode ser uma luta contra os papéis normativos tão importantes na construção social
Ninguém sabe direito como nascem seus desejos. Ninguém sabe direito como se forma sua identidade sexual. Mas todo mundo intui que a sexualidade humana é a base de quase tudo que fazemos. De como nos comportamos. E todos sabemos que socialmente e culturalmente somos cobrados pelo que desejamos. Sabemos também que este padrão de aceitação de nosso estereótipo e comportamento sexual muda de acordo com os lugares, tempos, condições socioculturais em que vivemos. Sabemos que estes ditames socioculturais da sexualidade humana criam preconceitos que cerceiam nossos desejos, mas sabemos também que, se todos cedermos aos nossos desejos totalmente, nossa civilização se arruína e nos arruinamos. Doutor Freud já dizia que a base da civilização é nossa castração – em boa medida. Mas a base da discussão é até que ponto esta castração é válida ou fruto de uma repressão inválida. Sexo é um angu de caroço. Ninguém mente quanto aos seus desejos para si mesmo. Mas construímos involuntariamente nosso desejo. E nos formamos como cidadãos com base em nosso desejo ou na castração de nossos desejos em boa medida.
Todos também intuímos direito que o meio em que vivemos não necessariamente é determinante, mas influencia em nossos estereótipos sexuais. E que estes estereótipos sexuais criam nossa condição comportamental, os papéis normativos que regulam não só nossos desejos, mas nossa construção social como indivíduos. E esta é uma verdade escamoteada pelo pseudoprogressismo atual que diz que nossa sexualidade é inata, sem nenhuma influência social. Não é. O elemento biológico é, sim, muito forte e determinante na construção de nossa sexualidade. A inversão sexual, a dita homossexualidade, já foi vista com bons olhos e promovida socialmente. Vejam os casos dos gregos na época de Sócrates. Resultado: todos tinham um comportamento bissexual. A literatura de então traduz perfeitamente que aquele comportamento não só era visto como normal, mas incentivado. A base da heteronormatividade era construída com o valor da fecundidade. Uma sociedade machista que via a mulher como inferior, mas que via na homossexualidade um valor romântico. Estranho hoje. Normal naquela época.
Há hoje uma tentativa de normalização também da questão da transsexualidade. O avanço da medicina e da ciência, sobretudo a ciência estética, aumentou esta normalização. Há inúmeros recursos estéticos e procedimentos cirúrgicos e hormonais para aqueles que querem trocar de sexo ou se parecer com o sexo oposto. Fato consequente: as cirurgias de mudança de sexo aumentaram exponencialmente no mundo e também o numero de transexuais – operados ou não. De fato, a transsexualidade sempre foi vítima de imenso preconceito. Socialmente, transexuais sempre tiveram problemas de encaixe social. Maior ainda que homossexuais. São discriminados no trabalho e no próprio desejo quase sempre escondido de quem os deseja. Maioria deles cai na prostituição por óbvia exclusão e discriminação sexual. Mas como combater este preconceito sem mexer em vespeiro da ambiguidade da formação sexual da sociedade é o problema.
Recentemente, uma mãe travesti perdeu a guarda de seu filho por usar a cabeça do garoto como molde de perucas femininas. A mãe filmou o garoto em constrangimento e humilhado, um garoto com padrão claramente heteronormativo, sendo constrangido a usar adereços femininos. O garoto chorava, humilhado, enquanto a mãe dizia para o garoto: ‘Você está linda’. Uma violência à liberdade de construção da identidade do garoto. Tudo, segundo ela, para combater o preconceito do filho contra a transsexualidade. Seria o caso de tirar a guarda do garoto? Muitos disseram que a travesti sofreu preconceito e que a atitude do juiz foi exagerada por um erro pontual da mãe. Outros dizem que uma pessoa trans ou um meio permissivo sexualmente influi diretamente na construção da sexualidade da criança. Os gregos estão aí para provar isto. A fluidez latente sexual de cada pessoa é afetada, sim, pelo meio em que vive. Como comportamento ou como trauma. O fato é que, por óbvio, este caso traduz uma certa apologia à castração de qualidades masculinas em nossa sociedade em nome de uma reconstrução do papel do homem. O homem viril, másculo, que protege a sua prole, fisicamente superior, é muitas vezes confundido com o machista opressor que cerceia a liberdade feminina e tolhe as potencialidades de uma mulher. A tentativa de feminilização de um garoto heteronormativo por uma mãe travesti para um falso combate ao preconceito vai neste sentido. A própria masculinidade é muitas vezes vista como uma ameaça e um preconceito em si.
No caso dos gregos antigos, a apologia da homossexualidade em sua cultura não era vista como inversão de gênero. As características viris da masculinidade eram vistas como virtudes. Hoje, a sentimentalidade, o afeto e a ternura, características mais femininas, substituíram a força viril de heróis passados, que muitas vezes são vistos como estereótipos machistas. A tradição familiar é baseada num padrão heteronormativo. Mesmo a inversão sexual de gênero cria um molde de família heteronormativa. Um homem que se percebe mulher ou uma mulher que se percebe homem sempre usam de papéis normativos invertidos na tradição destes padrões. Não existe quebra de padrão sem um padrão. Por isso, não cola esta história de “não existe coisa de menino ou de menina”, tantas vezes utilizada pela famigerada ideologia de gênero que quer desconstruir os papéis normativos tão importantes na construção social. Claro que características femininas e masculinas se confundem entre ambos os sexos. Uma mulher pode ter um instinto de luta e força e um homem pode ter um alto grau de sensibilidade e doçura.
Mas, biologicamente, sempre haverá um direcionamento maior destas características em cada um dos dois sexos. Pode haver, sim, uma inversão pontual em maior ou menor medida em alguns indivíduos. Assim como na preferência sexual. E pode haver, sim, uma inversão maior, tanto do ponto de vista de criação de desejos sexuais ou de construção de identidade sexual causada por uma cultura complacente a esta inversão. O que não pode haver é o desrespeito à liberdade, em toda e qualquer sociedade, desta construção identitária sexual em nome de um falso combate ao preconceito. O que percebemos muitas vezes é que uma bolha progressista tenta colocar peruca e adereços femininos em qualidades predominantemente masculinas que sempre formaram a equação binária que gera o equilíbrio da sociedade. Uma revolta – justa que seja – contra o preconceito ao diferente não pode se tornar um massacre de uma bolha a um padrão.
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