Educar filho é se educar para um trabalho de amor, bem diferente da tarefa afetiva de adestrar um cão

Um cachorro é um objeto de afeto que cede a caprichos do dono, e não há diálogo ou educação feita a um animal de estimação; a educação de um filho é a base do amor cristão

  • Por Adrilles Jorge
  • 15/01/2022 12h05
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Jimmy Dean/Unsplash Pai com seu filho no colo (ambos negros) em uma mesa de cozinha, com frutas, sucos, cereais e um computador aberto Papa Francisco disse que são egoístas aqueles que não querem ter filhos

Muitos ficaram irritados com o papa Francisco quando ele disse que a adoção de animais domésticos, substituindo filhos, era sintoma de egoísmo e narcisismo. A primeira impressão pode ser ruim mesmo. Como assim, perguntaria uma ”mãe de pet”? Cães, por exemplo, são, a grosso modo, os verdadeiros cristãos. Poder-se-ia dizer que um cachorro perdoa incondicionalmente qualquer ato agressivo, impensado ou autoritário de seu dono. Amam incondicionalmente aquele que os alimenta, que lhes dá amor, mesmo que este amor seja torto, turvo e exercido com autoridade. Um amor cristão não seria assim? Pois a resposta é um sonoro não para todos os autoproclamados pais de pets.

Não me entendam mal: amo cães e gatos. Acho que são manifestação de afeto, carinho e amor puro. Mas uma criança, um filho, é uma consciência humana em expansão, a ser educada por seus pais. Um cão tem um dono. É um objeto de afeto que cede a todos os caprichos e vontades com o dono. Não há diálogo ou educação feita a um animal de estimação. Um bicho é no máximo adestrado. A educação de um filho é a base do amor cristão. Uma forma permanente de diálogo, de afeto através da educação, de descoberta permanente da evolução da consciência deste ser vivo que é gestado na comunhão de amor espiritual e carnal de um casal. O trabalho permanente de educação de um filho é o trabalho permanente de um amor. Uma amizade demanda diálogo, exame dos contrastes de opinião, uma mútua educação. Uma relação afetiva amorosa demanda diálogo, exame de contrastes de opinião, de percepção de mundo. E a criação de um filho, o signo vivo da possibilidade de sua imortalidade através da continuação de sua carne, no plano espiritual e carnal, demanda contraste de opinião, de construção moral de uma percepção intelectual de uma criança.

Ter um filho é o mais sublime trabalho, permanente e eterno, da construção de um amor. Totalmente diferente do trabalho fácil de adestração de um animal de estimação, que lhe oferece carinho incondicional. Educando um filho, através da percepção de sua formação permanente, um pai também vai se educando, percebendo por vezes as falhas de sua autoridade, de sua própria percepção de mundo, que pode crescer com o filho até a idade adulta, quando este poderá te oferecer sua visão de uma realidade ou da possibilidade da criação de uma realidade melhor. Essa mútua educação se dá através deste trabalho incessante do amor entre três consciências: do pai, da mãe e do filho. Essa unidade familiar é a unidade do diálogo pleno da construção de um amor cristão. A base que se expande para todos que se tornam irmãos, pais e mães em outras diversas relações humanas, no trabalho, na amizade, nas mais diversas relações afetivas.

Entendo o argumento do papa, que diz ser narcisismo este apego a pets e desapego a filhos, como a percepção de um sintoma de um narcisismo social contemporâneo. Pessoas têm preguiça atual de relações reais, nas quais estabeleçam um diálogo mais aprofundado, quer seja com amigos ou com seus namorados ou cônjuges. Amar uma criatura com consciência dá um trabalho danado. Amar, sustentar, educar uma criança, um filho, e trabalhar junto com a construção de sua consciência, dá mais trabalho ainda. Mas o sentido primordial da vida é o trabalho de construção afetiva, de amor, com as pessoas com quem vale a pena o convívio. E o filho é uma imposição genética amorosa do destino que você decide escolher e amar. Um filho é um sentido absoluto de vida. Um sentido exaustivo, extenuante, mas incontestável.

Pessoas se aferram em suas carreiras e trabalhos, querendo recompensas, e se esquecem que o mais sublime trabalho de uma vida não é o de suas carreiras ou empregos; é o trabalho de permanente construção de amor entre as pessoas, sejam elas os filhos, amigos, mães, companheiros de trabalho etc. A recompensa pelo trabalho amoroso é o amor em si, que te torna uma pessoa melhor. Mesmo o trabalho de uma carreira é de doação ao próximo. E o trabalho da criação de um filho te obriga a olhar para além das recompensas frugais de uma carreira. Te obriga a olhar para um sentido humano de vida fora de sua vaidade, de suas recompensas pessoais, de seus prazeres sexuais, financeiros, materiais. Ter um filho te obriga a olhar para a construção permanente de uma humanidade que vai além de seu próprio ego.

Mesmo uma obra poética ou filosófica, um pedreiro que constrói uma casa para alguém, um governante que deve melhorar a vida de uma nação são trabalhos menores do que o de ter um filho. Cada um encontra sua utilidade na vida, sua disposição, seu melhor talento na construção de um amor permanente entre as pessoas. Eu, por exemplo, não tenho filhos. Não me casei. E confesso: é um longo e sombrio trabalho de construção de um amor para além de uma família estabelecer uma doação permanente dentro da solidão acompanhada de amigos e parceiros de trabalho. Tenho minha obra poética, meu trabalho jornalístico e uns tantos amigos e parcerias afetivas. Não é o caso de obrigar alguém a ter filhos. Mas é perceber que o ”crescei e multiplicai-vos” bíblico não é apenas um mandamento de reprodução genética, mas de melhoria amorosa na criação de um outro ser humano, sua continuidade.

Desprender-se do ego é amar cada indivíduo como se fosse um filho. O que é difícil, praticamente impossível. Amar o semelhante e exercer este amor em pequenas ações é um exercício de amor à humanidade (desconfie de quem diz amar a humanidade no geral; em geral, são pessoas que têm preguiça ao próximo). E ter um filho é o mais sublime exercício vivo desta humanidade. A reprodução de um filho é a reprodução da construção de um amor humano, na mais ampla acepção do termo, para além do mero instinto superficial de amar e querer ser amado (que se dá com um cão, por exemplo). Ter um filho é um trabalho humano que te torna filho deste trabalho, de humana compreensão de outro ser. E, por consequência, de uma compreensão maior de toda a humanidade.

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