Ditadura cubana não permite a manifestação de ideias de jovens artistas e intelectuais

Integrantes do Movimento de San Isidro foram levados ao Ministérios da Cultura para uma conversa; alguma coisa acontece em Havana e, dessa vez, esses jovens não desapareceram do mapa

  • Por Álvaro Alves de Faria
  • 04/12/2020 12h34 - Atualizado em 04/12/2020 12h46
Pixabay Bandeira de Cuba Jovens artistas cubanos pedem liberdade de expressão e de criação ao governo ditatorial

Com o passar dos anos, o desencanto é alguma coisa praticamente certa. Chega-se ao desencanto com muita facilidade, quando o homem vê que a maioria de seus sonhos de juventude começa a desaparecer. Nesse instante, o homem se depara com o que foi e agora com o que é. Coisas distintas, muito distantes uma da outra. Não se livra facilmente de um desencanto. O desencantamento é uma doença da alma. Não tem cura. E esse desencantamento surge, muitas vezes, sem que se perceba, com uma notícia, uma pessoa, um olhar, um abraço, com uma ausência. Digo tudo isso, sentimento pessoal, para tocar num assunto que me lembra dias escuros que vivi e vejo que foi para nada. Mais de 200 jovens artistas e intelectuais de Cuba tiveram que acabar com uma manifestação corajosa que faziam em Havana contra a prisão de um integrante do chamado Movimento San Isidro. Por incrível que pareça, não foram presos nem desapareceram. Foram somente levados ao Ministério da Cultura para conversar e foram rápidos, antes de ouvir algum discurso oficial: querem ter a liberdade de expressão e de criação, direito à dissidência, fim da repressão e do assédio a artistas independentes. A luta é também contra o decreto 349, que vem causando polêmica há muito tempo e que obriga o artista a aderir a uma instituição estatal.

De acordo com a agência Reuters, os artistas aceitaram encerrar a manifestação pacificamente, mas com palavras de ordem que foram repetidas muitas vezes. Alguma coisa está acontecendo por lá. Não é possível. Não foram presos e sim convidados para um diálogo. E mais: houve uma incrível mobilização das figuras mais consagradas do cinema cubano, em favor dos jovens artistas, entre eles poetas, escritores, pintores, autores de peças teatrais e intelectuais que escrevem o que a ditadura cubana não admite. Muito pelo contrário. Mas, como assim? Não é ditadura? Mais de 60 anos de governo não é ditadura? Então é o quê? Antes desse “diálogo”, a polícia cubana havia acabado com violência outra manifestação que já durava 10 dias. A polícia desceu o pau dizendo que o protesto tinha de acabar por causa do coronavírus. Mas o protesto não acabou. O movimento nasceu no bairro San Isidro, em Havana, por isso tem esse nome. E o nome do movimento se espalhou rapidamente pelo país, boca a boca, trazendo muitos jovens artistas de lugares afastados de Havana. Na conversa que tiveram com as autoridades da área cultural de Cuba, os jovens pediram a libertação do rapper Denis Sollis, preso acusado de desacato a autoridade e condenado a oito meses de prisão.

Trinta integrantes do movimento recebidos pelas autoridades, foram acompanhados pelo cineasta Fernando Pérez, diretor de “Suite Havana”, e pelo ator Jorge Perugorria, do filme “Morango e Chocolate”. Os 30 artistas jovens foram francos e faz mais de 60 anos que, por temor, não se fala assim com uma autoridade cubana. Disseram que estão cansados de ser perseguidos, espancados, maltratados, feridos e outras coisas afins. O resultado da conversa não foi bom. A jovem artista plástica Tânia Brugueras diz que foi muito difícil conversar no encontro que durou cinco horas. Difícil porque tudo que tem relação com ideias é proibido. De qualquer maneira, quem poderia imaginar que um dia o governo cubano perderia cinco horas para conversar com manifestantes contra o regime que foi cantado em verso e prosa enaltecendo a revolução de 1º de janeiro de 1959, inclusive por mim, que morria de amores por aqueles homens que desceram Sierra Maestra para tirar o poder do ditador Fulgêncio Batista. É inacreditável, mas o ministro da Cultura de Cuba, Alípio Alonso, está disposto a conversar. Ele mesmo, um ministro cubano, quer dialogar. Pediu que seus assessores comunicassem aos jovens artistas. O que é isso, companheiro?

A polícia cubana já invadiu uma vez a sede do Movimento San Isidro e desalojou os jovens que lá se encontravam. E não foi com palavras gentis tipo: “Vocês, jovens, poderiam, por favor, deixar este recinto?” Não, não foi. Foi jogo bruto. Seis desalojados estavam em greve de fome. Mas não foram presos e sim aconselhados a ir para casa. Mas ninguém foi para casa. É de triste memória a morte por greve de fome de Orlando Zapata. Ficou 85 dias sem comer. Estava à morte e as autoridades cubanas se negavam a ouvi-lo. O ex-presidente Luiz Inácio da Silva estava lá nessa época e se manifestou contra Zapata porque ele cometeu o “crime” de pedir liberdade para viver. Ao lado de Fidel, Lula chegou a dizer que se fosse assim, ele teria de soltar todos os presos do Carandiru. É uma besta quadrada, mas isso mostra bem quem ele é. Essa figura falida falou em Carandiru misturando a figura do preso comum e do preso político. Pouco se lixou com Zapata, que morreu no 23 de fevereiro de 2010. A Anistia Internacional classificava Zapata como um “preso de consciência”. E diante de Fidel, Lula se mostrou contra o preso com palavras covardes.

No tempo de idolatria à revolução cubana, fui duas vezes a Cuba, quando ir para Cuba era um crime dos mais graves contra a ditadura brasileira. O meu desencanto começou na segunda viagem que fiz para lá e pude constatar coisas que não imaginava. Então tudo que fizeram foi para aquilo que vi? Hoje meu desencanto é total. Uma ditadura sanguinária como outra qualquer. Não aceito ditadura nem de esquerda, de direita, do centro, do lado, do alto, do baixo. Nada. E o maior e mais temido dos sanguinários se transformou em artigo da moda. Sua cara está estampada em camisetas, em tatuagens, em quadros. Seja como for, alguma coisa está acontecendo em Havana. No encontro com as autoridades do setor cultural de Cuba, o cineasta Fernando Perez foi direto e não mediu as palavras. Ele disse que os jovens que estavam ali deveriam ser ouvidos, porque eles têm uma nova linguagem para Cuba. O dramaturgo Yunio Garcia, 38 anos, resumiu tudo com palavras corretas, dizendo que esses acontecimentos representam um tempo histórico. Pode ser. Mas não sou tão otimista. De repente os sanguinários que têm a ilha como um quintal, resolvem reagir e os jovens artistas e intelectuais simplesmente desaparecem do mapa. E não se fala mais nada, até porque o único jornal de Cuba pertence ao governo e só enaltece o governo. Talvez o poeta Reinaldo Arenas poderia explicar melhor. Por se negar a escrever o que o governo queria, acabou expulso de Cuba. Morreu com 47 anos em Nova York. Talvez Arenas pudesse falar. E pelo que consta, morto não fala. Então fica valendo a “verdade” oficial.

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