Enquanto autoridades discutem o sexo dos anjos, famílias enfrentam fila em busca de osso para ter o que comer

No país que registra mais de 20 milhões de pessoas no mapa da fome e 15 milhões de desempregados, restos doados por açougue viraram o almoço de moradores de uma periferia de Cuiabá

  • Por Álvaro Alves de Faria
  • 20/07/2021 14h25 - Atualizado em 20/07/2021 14h36
Eliane Neves/Fotoarena/Estadão Conteúdo - 13/07/2021 Homem em situação de rua se agacha e remexe o lixo ao lado de uma barraca formada por cobertores Homem em situação de rua remexe o lixo na zona oeste de São Paulo; pandemia agravou a fome e a miséria

É difícil encontrar uma notícia que nos dê um pouco de alento. Parece que o Brasil é feito de coisas quebradas. Só nos deparamos com absurdos que machucam a dignidade humana. Exemplo disso é o que acontece em Cuiabá, no Mato Grosso, onde moradores de um bairro da periferia fazem fila todos os dias num açougue que faz doação de ossos. Os que estão na fila são especialmente crianças e mulheres, em busca de um osso para ter o que comer. Puta país perverso o nosso! E enquanto acontece coisas assim, as chamadas “autoridades” continuam essa trajetória inconsequente, discutindo o sexo dos anjos. É aviltante. As famílias da fila dizem que não dispõem de dinheiro sequer para comprar um pãozinho. O que fazer com os ossos dos açougues? Simplesmente joga-se numa panela com água e deixa ferver. O almoço é o caldo e alguns fiapos de carne grudados nos ossos. É uma cena difícil de imaginar. Mas é um retrato de um lugar que passa a maior parte do tempo discutindo a política da vantagem. São mais de 20 milhões de pessoas que passam fome no país de 15 milhões de desempregados. Uma desigualdade brasileira que assusta e pouco interessa aos governantes, ocupados com suas carreiras políticas e com seus cargos no governo. Saindo da fila dos ossos, essas famílias percorrem as feiras livres em busca de algum legume estragado, mas com um pequeno pedaço que dê para comer.

O aumento da fome e da miséria no Brasil se agravou com a pandemia, que nunca mereceu o cuidado devido do governo federal. A pandemia foi sempre tratada com descaso. A isso se soma a defasagem dos valores do Bolsa Família, por exemplo, e a desativação de programas sociais voltados ao combate à fome. A ironia disso tudo é saber que o Brasil é o segundo maior de exportador de alimentos do mundo. Enquanto exporta, cresce cada vez mais o número de famílias em situação abaixo da linha da pobreza. Por enquanto, o que ajuda um pouco é o auxílio emergencial do governo, que atende as famílias sem renda nenhuma. Mas o problema é: e quando o auxílio emergencial findar, o que o país vai fazer por sua população carente? Não vai fazer nada. Estão todos ocupados com as coisas práticas, mas, nesta segunda-feira, 19, o presidente Bolsonaro informou que o Bolsa Família será reajustado ainda neste ano. Em média, pagará R$ 300 por mês. A média atual está em R$ 190 mensais. Atualmente, 18 milhões de famílias recebem esse benefício. Bolsonaro afirma que esse aumento vai pesar muito nas contas da União, mas pondera que as dificuldades de grande parte da população precisam ser resolvidas. O novo Bolsa Família começará em novembro, quando terminará o auxílio emergencial. Não será a salvação do mundo, mas auxiliará muito as milhões de famílias que vivem procurando alimento até no lixo das casas e dos restaurantes. Mesmo com o aumento do Bolsa Família, essas milhões de pessoas que passam fome continuarão a depender de iniciativas privadas, de grupos de pessoas que se unem para fazer doação de alimentos e dos açougues com fila para doar ossos, como em Cuiabá. Não se espere nada além disso. Infelizmente, o retrato é esse, sem retoque. 

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