Crianças ainda nascem escravas na Mauritânia
Javier Otazu.
Nouakchott, 1 fev (EFE).- Eles não têm algemas nos pés ou correntes no pescoço, mas os escravos na Mauritânia não são uma metáfora: quando uma mãe é escrava, seus filhos nascem escravos e carregam o estigma pelo resto da vida.
A prática da escravidão e a impunidade voltaram a protagonizar o debate na Mauritânia depois que o ativista Biram Ould Abeid Ould Dah foi condenado a dois anos de prisão, em 15 de janeiro, por organizar ilegalmente um protesto contra a escravidão.
Biram foi homenageado em 2013 com o prêmio da ONU de direitos humanos por seu “combate não violento contra a escravidão”, mas bastou uma discussão com a polícia para que fosse condenado por dois anos por “resistência contra a autoridade”.
Os escravos na Mauritânia do século XXI são pastores e camponeses nas regiões rurais e empregados domésticos nas urbanas, explicou à Agência Efe o presidente da SOS Escravos, Boubacar Ould Mesud, que nasceu em uma família de servos. São negros escravizados por brancos (mais especificamente árabes ou berberes de pele mais clara).
Segundo o discurso oficial, restam apenas “sequelas” da escravidão. Para os abolicionistas, até 40% da população (os negros arabizados chamados “harratines”) é vítima da escravidão de algum modo, mesmo que apenas pela estigmatização social.
Na falta de estatísticas oficiais, a ONG Global Slavery Index, que luta contra a escravidão no mundo inteiro, colocou a Mauritânia no topo do ranking mundial de países escravistas. Estudos contabilizam cerca de 155 mil escravos no país, o equivalente a 4% da população.
“A única coisa que a colonização francesa fez foi proibir a venda pública dos escravos nos mercados, mas perpetuou o fenômeno”, lamenta Mesud.
De acordo com Aminetu Mint Moctar, histórica ativista a favor dos direitos humanos, “após a proibição em 2007, só um caso de escravidão foi julgado nos tribunais e a condenação de três anos ao culpado não foi cumprida, pois saiu depois de oito meses de pena”.
O governo já anunciou um tribunal especial para esse tipo de casos, que nunca saiu do papel. A Agência Tadamun, que cuidaria de casos de escravidão, não conta com nenhum abolicionista, “mas com conhecidos escravistas”, explicou Mint Moctar.
Na Mauritânia, as estatísticas por raça são sigilosas, mas calcula-se que os “brancos” componham de 20 a 30% do país, e têm em suas mãos o poder político, econômico, jurídico e militar. É raro encontrar mauritanos negros em cargos de poder.
Junto a uma discriminação racial histórica, a escravidão tem suas raízes em práticas sociais seculares e em uma interpretação “instrumentalizada” da religião islâmica, na qual a escrava é uma espécie de “quinta esposa” (além das quatro com que um muçulmano se pode casar), como lembra Mesud.
Em 2012, o líder antiescravista Biram queimou publicamente livros islâmicos do rito sunita malekita (majoritário no norte da África) porque ,segundo ele, justificaram historicamente a escravidão. O ato lhe custou uma primeira condenação à prisão.
Biram tocou na ferida ao lembrar que a escravidão é muito mais que “sequelas” e sua mensagem política calou grande parte da sociedade, até o ponto de ter sido o segundo candidato mais votado (8,6% dos votos) nas últimas eleições presidenciais, em 2014.
A luta de Biram e sua ilegal Iniciativa para o Ressurgimento do Abolicionismo (IRA) se dissemina cada vez mais. O partido islamita Tawasol, o segundo em número de deputados e mais implantado entre a população “branca”, acaba de apresentar sua “visão da união nacional”, na qual o eixo é a luta contra a escravidão, o racismo e a discriminação.
O documento pede para “deixar de usar a religião como pretexto para encobrir práticas escravistas”, libertar “a herança popular de seu lado negativo que gera o racismo” e implantar medidas de discriminação positiva “para os grupos vulneráveis”.
Mesud aprova a conscientização na classe política, mas lembra uma triste realidade.
“Não há remédio para o escravo que não seja fugir de seu amo. Mas, até mesmo os escravos, geralmente sem estudo e carentes de recursos, muitas vezes acabam abaixando a cabeça e retornando à sua condição. Apenas oferecendo formação recursos romperemos o círculo vicioso”, concluiu. EFE
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