Felipe Moura Brasil: Jornalismo no dos outros é refresco

  • Por Jovem Pan
  • 01/11/2019 10h26 - Atualizado em 01/11/2019 10h58
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Montagem/Ag Brasil/Estadão Conteúdo Para petistas e bolsonaristas, jornalismo no dos outros é refresco

Em 11 de abril de 2019, a revista Crusoé publicou um documento em que Marcelo Odebrecht explicava à Polícia Federal que o codinome “amigo do amigo de meu pai”, usado em e-mail enviado por ele a dois executivos da Odebrecht em 13 de julho de 2007, “se refere a José Antônio Dias Toffoli”, então advogado-geral da União indicado por Lula.

Com autorização do próprio Dias Toffoli e dentro de inquérito ilegal aberto pelo atual presidente do STF, o ministro Alexandre de Moraes censurou Crusoé e O Antagonista. Outros veículos também repercutiram a matéria, mas não foram censurados. Sites bolsonaristas, inclusive.

“É ofensa à instituição, à medida que isso tudo foi algo orquestrado para sair às vésperas do julgamento em segunda instância”, alegou Toffoli, como se encarnasse o Supremo inteiro e tivesse provas da alegada orquestração. “De tal sorte que isso tem um nome: obstrução de administração da Justiça”, acusou.

Em 25 de outubro de 2019, a revista Veja publicou um depoimento em que Marcos Valério disse que Ronan Mario Pinto afirmou que “iria apontar” Lula “como o Cabeça da morte de Celso Daniel”, ex-prefeito de Santo André assassinado em 18 de janeiro de 2002.

Em nota oficial do PT, Gleisi Hoffmann afirmou que iria à Justiça: “Veja foi longe demais, até para uma revista que sempre abusou de mentir sobre o PT, e terá de responder pelo crime que cometeu.”

No Twitter, o presidente Jair Bolsonaro explorou a notícia, publicando uma síntese ainda mais comprometedora para Lula: “Marcos Valério alega que o corrupto presidiário Lula é um dos mandantes do assassinato de Celso Daniel! Surpreso? Não!”

Repare que o trecho “disse que Ronan afirmou que iria apontar” virou “Valério alega que Lula é”. Os bolsonaristas vibraram nas redes sociais.

Em 29 de outubro de 2019, porém, o Jornal Nacional noticiou o depoimento – bem menos comprometedor – do porteiro do condomínio carioca no qual um dos acusados pelo assassinato da vereadora do PSOL Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes entrou na noite do crime, alegando, segundo o depoente, que iria para a casa de Jair Bolsonaro, embora tenha ido para a de outro acusado, Ronnie Lessa.

A reportagem apurou e registrou que Bolsonaro, então deputado federal, “estava em Brasília nesse dia”, “portanto, ele não poderia estar no Rio”, o que refutou a alegação do porteiro de que a voz que autorizou pelo interfone da casa de Bolsonaro a entrada do acusado era de “Seu Jair”. O advogado do atual presidente, Frederick Wassef, ouvido pela reportagem, também confirmou que Bolsonaro estava na capital federal.

O Jornal Nacional registrou também que “os investigadores estão recuperando os arquivos de áudio para saber com quem, de fato, o porteiro conversou”. Embora o também morador do condomínio Carlos Bolsonaro tenha divulgado um áudio no dia seguinte – que seria reproduzido na edição do Jornal Nacional do dia 30 -,os repórteres não tiveram acesso anterior aos áudios, cuja perícia só seria pedida pelo Ministério Público do Rio às 13h da tarde posterior à notícia e apenas duas horas antes da coletiva na qual promotoras confirmaram que Ronnie Lessa foi quem autorizou por interfone a entrada.

Em relação à matéria original – que, longe de ser notícia falsa, era notícia verdadeira sobre alegações aparentemente falsas -, Bolsonaro e PT apenas trocaram de lado. Bolsonaro xingou os repórteres do Jornal Nacional de “patifes” e “canalhas”, e ameaçou não renovar a concessão da Globo. Gleisi cobrou “explicações urgentes” a respeito das “graves revelações” sobre a citação de Bolsonaro.

Explorar notícias incômodas sobre adversários e recorrer a vitimismo e/ou abusos de poder ao ter o nome citado em investigações, mesmo sem atribuição de culpa, são expedientes comuns à esquerda e à direita – cujo duplo padrão só engana os brasileiros mais ingênuos.

Para petistas e bolsonaristas, jornalismo no dos outros é refresco.

* Felipe Moura Brasil é diretor de Jornalismo da Jovem Pan.

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