Privatização do SUS é falsa, e debate sobre decreto partiu de premissas erradas
Determinação para a produção de estudos foi lida como o início de um processo de “privatização” do SUS; interpretação errada se deve, em parte, ao modo relapso com que o governo conduziu a comunicação
Na última semana, a edição de um decreto federal (10.530) que incluía no âmbito do Programa de Parcerias de Investimento (PPI) a política de fomento ao setor de atenção primária à saúde foi alvo de uma enxurrada de críticas. O objetivo desta inclusão era permitir a elaboração de estudos de alternativas de parcerias com a iniciativa privada para a construção, a modernização e a operação de Unidades Básicas de Saúde dos estados, do Distrito Federal e dos municípios. Alvejado por reações exaltadas de políticos, analistas e até celebridades, o decreto foi revogado um dia depois de sua edição. A norma foi vista por muitos como uma sinalização à privatização do Sistema Único de Saúde (SUS), cuja relevância e aceitação no atual contexto é praticamente um consenso entre todos.
O problema destas reações e críticas ao decreto é que elas parecem partir de premissas erradas. O primeiro erro é supor que o conteúdo do decreto indicava uma tendência de “privatização” do SUS. Mas o que seria, no contexto destas críticas, “privatizar” o SUS? Eliminar o dever do Estado em manter o serviço de saúde? Delegar a gestão do sistema a grupos privados? Substituir a prestação estatal do serviço de saúde pelo custeio público do serviço prestado pelas unidades privadas de saúde? Ampliar a participação dos privados na operação das estruturas de saúde? Boa parte das críticas feitas sequer tem claro do que se trata a tal privatização do SUS. Seja como for, o fato é que o decreto não traz nenhuma determinação para a extinção ou desintegração do SUS – ou para qualquer forma de “privatização” – seja lá o que isso queira dizer neste contexto. Sua prescrição apenas se restringia a qualificar no âmbito do PPI as políticas de saúde primária, “para os fins de elaboração de estudos de alternativas de parcerias com a iniciativa privada para a construção, a modernização e a operação de Unidades Básicas de Saúde”. O único objetivo da norma era viabilizar, por meio do PPI (núcleo de inteligência do governo federal, criado ainda no governo Temer, dedicado à coordenação e estruturação de projetos estratégicos de infraestrutura), a elaboração de estudos para aqueles fins. Algo que o PPI já vem fazendo – e muito bem – em diversos setores da infraestrutura.
Perceba-se que os tais estudos cogitados não eram vocacionados à implementação de mudanças estruturais no SUS, mas à construção, modernização e operação das UBSs, por meio de cooperação público-privada – algo, aliás, que já ocorre no contexto do SUS. Hospitais públicos operados total (modelo Alzira) ou parcialmente (bata cinza ou bata branca, conforme o caso) por empresas privadas têm sido cada vez mais considerados pelos governos de todas as esferas como meio de conferir maior eficiência e qualidade na entrega do serviço de saúde. Esses hospitais funcionam dentro do SUS, mas sua operação é privada. E as poucas experiências que temos com estas unidades já sinalizam a superioridade da gestão privada. O Hospital do Subúrbio, em Salvador, é um bom exemplo. Trata-se de um projeto pioneiro do Estado da Bahia na gestão privada de hospitais públicos, cujo índice de satisfação de seus usuários tem alcançado a marca de 96,9%.
O segundo erro de premissa está em supor que o SUS não possa ser analisado e aperfeiçoado. Insista-se que o famigerado decreto apenas se propôs a viabilizar o desenvolvimento de estudos e análises voltadas – pelo menos, em tese – ao aprimoramento das técnicas de cooperação público-privada para a construção e operação das unidades básicas de saúde. Estamos falando apenas de estudos, diagnósticos, levantamentos e análises, que podem inclusive concluir pela inexistência de alternativas para implementar aperfeiçoamentos no sistema por meio de parcerias com o setor privado. Analisar é importante. Se concluirmos que nada precisa ser feito, muito que bem. Do contrário, terá o governo o dever de buscar os devidos aprimoramentos. Para isso, precisamos desenvolver essas análises. Simples assim.
A terceira premissa equivocada por trás dessas críticas é supor que a ampliação da participação privada no SUS seria presumidamente ruim ou desinteressante para o sistema. Estatisticamente, os serviços que vêm sendo desempenhados pelos privados, sob controle e regulação do Estado, têm revelado um nível de desempenho bastante superior àqueles exclusivamente estatais – como já exemplificado acima. Isso porque, por meio de contratos de parceria público-privada, consegue-se não apenas integrar os escopos de construção do hospital, sua manutenção e a operação dos serviços médico-hospitalares – integração que favorece uma série de ganhos de eficiência -, mas condicionar a entrega destes serviços ao atingimento de indicadores de desempenho. Isso gera maior eficiência na gestão e melhor qualidade na oferta do serviço ao usuário.
É lamentável, enfim, que esta discussão tenha sido desvirtuada por defeitos de compreensão do que se propunha com o decreto revogado. A simples determinação para a produção de estudos foi lida como o início de um processo de “privatização” do SUS. Isso elevou a potência da discussão e atraiu visões ideológicas sobre um tema sensível e polêmico. Em boa medida, esse desencontro de premissas tem causa no modo relapso com que o governo conduziu a comunicação sobre a edição da norma. A sensibilidade do tema foi subestimada, o que abriu espaço para essas múltiplas interpretações sobre uma questão simples, que poderiam ter sido evitadas a partir de uma comunicação cuidadosa e eficaz pelo governo federal. Esse é mais um capítulo da história de um governo inábil e desajeitado no trato com a imprensa e com as instituições. Mas, uma coisa é certa: a discussão sobre a ampliação da participação privada nos serviços públicos, inclusive de saúde, deve estar orientada mais pelos números e pelas análises e menos pelas ideias. Precisamos desideologizar as abordagens. Deixemos que os números e os estudos empíricos falem por si.
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