A vacina não é de Doria nem de Bolsonaro: é do brasileiro pagador de impostos
O cidadão pagador é tratado como alguém que recebe um ‘favor’; não poderia haver retrato melhor de um país onde o Estado é tudo e a população não é nada
O primeiro lote de vacinas contra a Covid-19 a ser aplicado no Brasil está sendo oportunidade para mais um espetáculo de falsificação grosseira dos fatos, demagogia vulgar e falta geral de vergonha na cara por parte da maioria das figuras públicas que têm alguma coisa a ver com a questão. As duas mais conhecidas, o governador paulista João Doria e o presidente Jair Bolsonaro, também são, é claro, as que se comportam pior. Acima e além do surto de inépcia agressiva e sem limites que tem marcado esta fase de pré-vacinação, e que é tratado em outro artigo da presente edição, os dois têm dado uma contribuição pessoal decisiva para a má qualidade do número de circo que está sendo oferecido ao distinto público em geral.
Seus piores momentos, entre tantos outros, podem muito bem estar na exibição deslavada de um dos mais antigos vícios do político brasileiro: dizer que foi ele quem “pagou” por seja lá o que está sendo oferecido à população, ou foi ele quem “deu”, ou foi ele que “fez” e assim por diante. Às vezes, dizem que a doação é do seu “governo”. Em outras, usam o pronome pessoal mesmo: “Fui eu.” Nos dois casos, é uma mentira em estado puro. No episódio em questão, Doria diz que a vacina que comprou da China é sua, e Bolsonaro diz que é dele. (No começo, quando suas equipes de marketing decidiram que pegava mal juntar a palavra “China” a qualquer coisa relacionada com a epidemia, o governador achou mais lucrativo dizer que a vacina era “do Brasil”; fez até faixa e cartaz para deixar isso impresso. Agora diz que é “de São Paulo”.) O presidente da República, por sua vez, diz que a vacina não é nem de Doria nem do governo paulista: a vacina, aí sim, é “do Brasil”, como Doria havia dito antes. É uma trapaça contra outra trapaça.
A vacina, seja de origem chinesa, seja das grandes empresas mundiais de medicamentos, não é nem de Doria, nem de Bolsonaro, nem dos seus governos, nem de São Paulo e nem do Brasil. Ela é unicamente do pagador de impostos brasileiro, que está tirando do seu bolso até o último centavo dos bilhões que serão gastos na vacinação e dos quais, como sempre, não lhes será prestada qualquer tipo de conta ou comprovação de despesa. É o tipo de verdade que Doria, Bolsonaro e nove entre dez políticos deste país têm uma incapacidade física e mental de dizer — em relação a vacinas ou a qualquer outro tipo de serviço que é prestado ao público.
É mal de nascença; pelo jeito, não tem cura. No caso, a discussão sobre a propriedade da vacina está sendo a disputa principal, pelo menos neste momento, entre os dois inimigos — envolvidos numa guerra aberta pela Presidência da República nas eleições de 2022. Bolsonaro, numa de suas declarações a respeito, até reconheceu de passagem que os recursos vêm do cidadão. Mas o tom, acima de tudo, deixava claro que ele considera o governo federal como o único responsável pelos possíveis benefícios de todas as vacinas, incluindo a chinesa — isso depois de passar semanas falando mal dela. Doria não se lembrou de fazer a ressalva: para ele o que interessa é dizer que Bolsonaro não fez nada e ele fez tudo, apenas isso. O pagador de impostos, paulista ou do resto do Brasil, não lhe passou pela cabeça.
Na verdade, qualquer político brasileiro, quando é interrogado oficialmente sobre a questão e depois de pensar duas horas, admite que o dinheiro público é do público, e não deles ou dos governos que dirigem. Mas na prática, e na maior parte do tempo, quase todos ignoram essa realidade. Na briga de foice em torno da vacinação contra a Covid-19, a única preocupação visível dos dois inimigos é gritar que foi “ele” quem fez — e, principalmente, que o “outro” não fez coisa nenhuma. Qual a diferença, para o pagador da fatura, se este ou aquele real, gasto com vacina ou com seja lá o que for, sai de imposto federal, estadual ou municipal? O dinheiro é exatamente o mesmo, e vem unicamente do mesmo lugar — do seu patrimônio. Não importa quantas caixas existem; o bolso é um só. Só faz diferença para quem pretende tirar proveito político da despesa que foi feita. Obra do “governo isso” ou do “governo aquilo”, como se pode ver nas placas (também pagas pelo público) que eles põem em volta do servicinho mais ordinário, de uma bica d’água a um abrigo de ônibus, são uma das peças-chave dos seus esforços de marketing eleitoral. Por que a Covid-19 seria uma exceção?
Para plena satisfação dos políticos e do seu entorno, as elites que se atribuem a incumbência de pensar, as classes intelectuais e os meios de comunicação passam batido por essa vigarice permanente. Todos eles debatem, com a maior seriedade do mundo, “quem dá” as coisas ao cidadão — como estão fazendo no presente espetáculo da vacinação, estrelado por Doria e Bolsonaro. O dinheiro pago aos chineses está vindo do ICMS, do Imposto de Renda ou do Cofins? E a multidão de outros gastos ligados à imunização — serão saldados com recursos que vêm de onde? O IPVA entra nisso? E o Pis-Pasep? Quanto dos repasses de verbas federais que é feito aos Estados vai ser aplicado no serviço? O Butantã recebe dinheiro do Ministério da Saúde? Não recebe? Vai receber? Só não interessa, em toda essa conversa, falar de quem está realmente pagando tudo. Não poderia haver retrato melhor de um país onde o Estado é tudo e a população não é nada.
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