Imprensa se mostra incapaz de exercer sua atividade natural e se torna uma religião

Nas eleições da Câmara, a mídia em peso dava a disputa entre Arthur Lira e Baleia Rossi, que nunca existiu, como ‘aberta’; Lira teve 302 votos contra 145 do oponente

  • Por J.R. Guzzo
  • 06/02/2021 10h00
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Michel Jesus/Câmara dos Deputados O presidente da Câmara, Arthur Lira Arthur Lira, candidato do governo à Câmara, derrotou Baleia Rossi por 302 votos contra 145

O resultado das eleições na Câmara dos Deputados e no Senado Federal é mais uma prova de que a mídia deste país que chama a si própria de “grande”, ou de “nacional”, ou coisa parecida, está se tornando um novo tipo de fenômeno — uma atividade que, definitivamente, não consegue mais operar de acordo com a sua natureza. É como um navio em que os tripulantes querem navegar terra adentro, e não mar afora. Meios de comunicação, pelo entendimento geral que se tem a respeito das suas funções, servem para dar ao público informação sobre as realidades que existem à sua volta — é por isso que as pessoas compram os seus serviços, e por nenhuma outra razão. Cada vez mais, porém, a mídia brasileira vem se mostrando incapaz de exercer a sua atividade natural. Em vez de transmitir fatos, passou a transmitir crenças; está se tornando uma religião, onde toda a energia se concentra em divulgar um evangelho no qual os comunicadores comunicam o que acham certo, virtuoso e obrigatório para a sociedade, e não o que está acontecendo. O resultado básico disso é que o público é apresentado, o tempo todo, a um mundo que não existe. Dizem que está acontecendo uma coisa e acontece outra — ou, frequentemente, acontece o contrário.

Não é uma questão de ponto de vista; é algo que pode ser constatado com elementos que os advogados chamariam de “prova material”. O episódio da escolha dos novos presidentes da Câmara e Senado é a última comprovação objetiva dessa anomalia — um clássico, na verdade, em matéria de desinformação em estado puro. Há uns dois meses, desde que o assunto apareceu no noticiário, o público foi informado, do primeiro ao último minuto, sobre algo que simplesmente não estava acontecendo: uma disputa duríssima, dessas em que tudo pode acontecer, entre candidatos do governo e candidatos da oposição. Só que jamais existiu, no mundo dos fatos, disputa nenhuma, nem candidato nenhum da oposição — os únicos candidatos para valer, desde o começo, eram os do governo, e a única coisa que podia acontecer era a sua eleição. Não custa lembrar. No início dessa história o público leu, viu e ouviu, como notícia de grande seriedade, que o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, poderia ser reeleito para o cargo. Maia, que de uns tempos para cá se “reinventou” como líder da esquerda nacional e marechal-de-campo da oposição, iria causar uma derrota mortal para o governo com a sua vitória; já podiam chamar o padre e encomendar o caixão para o presidente Jair Bolsonaro. Em nenhum momento, na verdade, Maia teve qualquer chance: a lei proíbe que presidentes da Câmara sejam reeleitos, e o Supremo Tribunal Federal decidiu que a lei deveria ser mantida. Se nem o STF aceita uma aberração dessas, qual a chance real da reeleição? Três vezes zero, mas a fantasia foi mantida viva, respirando por aparelhos, até a mídia informar que não, não tinha rolado.

Como não dava com Maia, teria de dar com outro; em cinco minutos apareceu um “candidato da oposição”, apresentado como perfeitamente capaz de ganhar a presidência da Câmara. A ficção foi mantida até o fim. A sessão decisiva já tinha começado, e os candidatos já tinham feito os seus discursos finais, o da oposição em favor “da democracia” — e a imprensa em peso continuava dando a disputa, que nunca existiu, como “aberta”, quando ela já estava fechada antes de começar. Minutos depois, concluída a contagem dos votos, o candidato do governo teve 302 votos contra 145 — não uma diferença de dez ou vinte votos, mas mais do que o dobro. Que disputa era essa? No Senado aconteceu a mesma coisa — mais de 70% dos votos foram para o candidato do governo. Nada disso é um erro de avaliação. É o resultado inevitável do abandono da atividade de informar em favor de um “jornalismo de resistência”. No entendimento dos que o praticam, e que hoje formam a maioria, a imprensa é uma missão, e não um ofício: dizer que a verdade é aquilo que se decide nas redações, e nada mais, tornou-se uma espécie de dever moral, político e patriótico. O público, para o seu próprio bem e para o bem do país, só pode ler, ver e ouvir o que os comunicadores acham que lhe deve ser dito. Do contrário, a população, na sua ignorância, no seu amadorismo ou na sua indiferença, vai ser enganada pelo governo, pela direita e pelo mal — e a mídia, em nome da sobrevivência da democracia e outros valores, está aí para combater nessa guerra que considera santa.

Jornalistas não gostam de admitir, nem para si próprios, que perderam a importância

A cara da mídia brasileira tem sido essa, de uma maneira geral, nos últimos cinco anos — possivelmente, desde que foi consumado o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff. Pode ter começado, para os peritos em ciência política, bem antes disso. Afinal, seja lá pela razão que for, o jornalismo é uma atividade que atrai preferencialmente pessoas de esquerda — e pessoas que se entendem como “de esquerda” não gostam, naturalmente, que presidentes de esquerda sejam depostos, ou que a direita forme qualquer tipo de maioria. Mas essa é uma data tão boa quanto outras, com a vantagem de estar mais próxima e envolver episódios ainda não esquecidos. Assim que Dilma foi posta na rua, por decisão de mais de três quintos do Congresso Nacional e com a aprovação do STF, a imprensa passou a divulgar a tese de que tinha ocorrido um “golpe”. De lá para cá, não mudou mais de ideia nem de assunto. Quando alguém se mete nesse caminho e não olha para mais nada, é inevitável, a uma hora qualquer, que acabe dizendo que 2 + 2 são 22. Mais: se, em nome da fé, perde a capacidade de admitir que errou, vai continuar errando. É a vida diária da imprensa brasileira desde que se transformou em culto político e ideológico: faz militância ativa em favor de uma visão de mundo e de vida, e quando não tem apoio nos fatos, pior para os fatos. Obviamente, essa conduta gera consequências práticas. É uma espécie de engrenagem. Um veículo que coloca os desejos de seus colaboradores acima das realidades acaba informando mal. Se informa mal, perde a credibilidade. Se perde a credibilidade, perde a importância. É onde estamos no momento: uma mídia cada vez mais excitada e cada vez menos relevante.

Realmente, se um comunicador diz uma coisa e acontece outra, e isso durante o tempo todo, qual a surpresa de ver as pessoas levarem cada vez menos a sério o que ele anuncia? Mais ainda, muita gente já nem se dá mais ao trabalho de utilizar os meios de comunicação tradicionais para se informar. O Instituto Verificador de Circulação, órgão que contabiliza o número de leitores na mídia impressa, anuncia que apenas entre 2018 e 2020 os jornais perderam um terço de sua tiragem; os dez maiores diários do Brasil, somados, têm hoje uma circulação pouco acima de 400 mil exemplares por dia em suas edições impressas. A audiência da televisão aberta e dos telejornais enfrenta uma concorrência cada vez mais dura das transmissões alternativas. Após o impeachment de Dilma, a mídia brasileira se meteu num desastre serial. Agiu ativamente para derrubar o seu sucessor legal, Michel Temer; a maior rede de televisão do país chegou, num lance extraordinário, a exigir sua renúncia em editorial levado ao ar no chamado horário nobre. Bastou o presidente decidir que não iria renunciar; pronto, não aconteceu nada. Deveria ter sido visto, aí, um sinal de que as coisas não eram as mesmas — o veículo considerado o mais poderoso do Brasil já não assustava nem Michel Temer. Mas ninguém viu coisa nenhuma. A mídia, em seguida, entrou de corpo, alma e tudo mais contra a candidatura de Bolsonaro na campanha presidencial de 2018; chegaram a dizer, como fato, que ele iria perder de “qualquer candidato no segundo turno”. Quem perdeu foi a mídia: o resultado acabou sendo exatamente o oposto do que os comunicadores comunicavam, e o vencedor foi um político que mal tinha 1 minuto de tempo no horário eleitoral obrigatório da televisão. Foi anunciado, em seguida, que as eleições poderiam ser anuladas por causa de um artigo de jornal — e por aí vamos, de “Queiroz” a Sergio Moro, de genocídio a impeachment, de nada em nada, até a eleição dos presidentes da Câmara e do Senado.

A imprensa brasileira, nisso tudo, mostra um bloqueio mental curioso — em vez de aprender alguma coisa com a observação da realidade, e de pensar se não seria o caso, talvez, de rever o tipo de jornalismo que está praticando, faz o contrário: a cada fracasso, dobra a aposta. Pensar no público, e indagar o que ele estaria achando de um noticiário que só erra, e erra sempre do mesmo lado, não é uma opção na mídia brasileira de hoje — jornalistas não gostam de admitir, nem para si próprios, que perderam a importância. Vivem entre si mesmos, ou então no meio do seu público — políticos, intelectuais, celebridades e assemelhados — e preferem continuar dizendo uns aos outros que são pessoas decisivas para estabelecer o que acontece no Brasil e no mundo. Se a maior emissora de televisão do país, certa do peso decisivo de sua palavra, afirma que o presidente da República tem de renunciar, mas o presidente ignora a ordem e não acontece rigorosamente coisa nenhuma; se a imprensa toda não admite que um candidato ganhe a eleição, mas ele ganha e também não acontece nada etc. etc. etc. — bem, é sinal que as coisas não estão correndo como os meios de comunicação querem que elas corram. Mas e daí? Obviamente, deixou de haver contato entre a realidade e o conteúdo da mídia. Não fica resíduo nenhum do que acontece; cinco minutos depois da eleição do novo presidente da Câmara, a questão mais notável para os comunicadores era relacionar tudo o que ele já fez, está fazendo ou vai fazer de errado. Como na antiga casa real da França, ninguém aprende nada, nem esquece nada.

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