Não se leve pelo preconceito: filme de Natal de Leandro Hassum é original e inteligente
Em meio a uma confusão temporal, Jorge, o personagem de Hassum, diverte, emociona e nos mostra que ator é o Jim Carrey brasileiro
No livro “Ava Gardner – Minha História”, autobiografia de uma das atrizes símbolos da Hollywood nos anos de 1940 e 1950, Ava revela logo de início aquela que foi uma de suas maiores insatisfações na vida: comemorar o dia de seu aniversário. Ela nasceu num dia 24 de dezembro (de 1922, apenas por curiosidade). Para a atriz, quando criança, não poderia haver desprazer maior do que dividir as atenções do seu próprio dia e, mais desagradável, comemorar com um tal de Jesus Cristo. Essa angústia certamente não foi privilégio de Ava Gardner e, já que a arte também imita a vida, assim acompanhamos o mesmo tipo de frustração na história de Jorge, personagem interpretado por Leandro Hassum na comédia familiar “Tudo Bem no Natal que Vem”. Jorge cresce com esse incômodo e torna-se um adulto, pai de família, decidido a evitar o infortúnio de assoprar velinhas e obrigado a tolerar a noite de Natal.
“Tudo Bem no Natal que Vem”, por tratar-se de um filme natalino, apresenta uma novidade ao mesmo tempo em que carrega um fardo diante de uma cinematografia brasileira reconhecidamente avessa aos filmes de gênero. O cinema nacional, a bem da verdade, é predominantemente arrogante e preconceituoso com produções ditas mais leves e com narrativas simples. E a crítica negativa encontra ecos ainda mais gritantes quando temos no elenco um ator popular como Leandro Hassum, outra vez sendo dirigido por um cineasta chamado de comercial como Roberto Santucci e numa história escrita por um roteirista, Paulo Cursino, visto como um fabricante de clichês. No fundo, tudo não passa de inveja. Hassum é nosso Jim Carrey, um ator que na comédia de costumes entrega suas famosas caras e bocas, enquanto no drama é capaz de uma singeleza única. Santucci, mais que um especialista no chamado cinema de gênero, é também um midas que transforma em ouro qualquer projeto que leve sua assinatura. Paulo Cursino é provavelmente um dos roteiristas mais talentosos, inteligentes e hábeis na arte de reinventar clássicas referências do cinema, transformando-as em ineditismos.
É praticamente certo que encontrarão analogia entre Jorge e O Grinch, o ranheta personagem de Dr. Seuss que odiava o Natal. Mas Jorge carrega no nome os mesmos traços daquele desiludido George Bailey de “A Felicidade Não se Compra” (1946). Ainda que de forma inversa, ele terá de enfrentar provações para descobrir o sentido da vida e o quanto as pessoas ao seu redor são importantes para ele. O personagem, que tem uma bela mulher e um casal de filhos, já não aguenta mais a reunião familiar para a ceia de Natal. O pior acontece quando ele é obrigado a vestir-se de Papai Noel e, ao subir no telhado para jogar os presentes pelo buraco da chaminé, acaba caindo do alto da casa. Não há necessidade de dramatizar o acidente, já que as consequências é que dão o tom da narrativa a seguir. Quando Jorge acorda, estranhamente ele se encontra mais uma vez na véspera de Natal e diante do estorvo de repetir a mesma ladainha. Referência óbvia ao hoje clássico “Feitiço do Tempo”, mas que o roteirista Paulo Cursino subverte com engenhosidade. Isso porque Jorge não acorda no mesmo dia. Um ano inteiro se passou, no entanto, inexplicavelmente ele se esqueceu de tudo o que aconteceu nos outros 364 dias.
A repetição da véspera de Natal irá atormentar Jorge por anos. Mas trata-se da premissa ideal, para fins cinematográficos, na qual o roteiro pode desenvolver inúmeras situações, criando camadas que abrem caminho para todos os personagens envolvidos. A família é numerosa: a sogra intrometida, o avô em estado vegetativo, o cunhado que sempre pede dinheiro emprestado, a irmã, que a cada ano tem um namorado diferente, o tio que sempre arruma confusão, as crianças infernizando. Há ainda o entregador que jamais se esquece de pedir a caixinha e a amante de Jorge. Sim, a cada um dos muitos “despertar” de Jorge, ele é surpreendido com uma novidade, inclusive com a existência de uma outra mulher que arruinou sua estrutura familiar.
“Tudo Bem no Natal que Vem” é genuinamente uma comédia, mas isso não impede que haja nas entrelinhas questões humanas de alta carga dramática. Jorge não é o Michael Newman protagonizado por Adam Sandler, que tem um controle remoto à disposição para inventar o futuro que lhe der na telha. Sua tragédia, mesmo que tratada com humor, é não ter domínio sobre nada e justamente porque desconhece tudo o que se passa em sua vida. Os anos se passam, os filhos crescem, familiares morrem. Jorge comete muitos erros, negligencia mulher e filhos, adia por anos um encontro com o próprio pai, mas ele nem sequer tem noção de que está semeando tristeza e discórdia; não tem ideia do que está perdendo. Entendemos, no entanto, que Jorge é igualmente especial e importante para aqueles que o rodeiam. Para a sorte e alegria do espectador, este é um conto natalino e, como tal, temos uma incrível reviravolta. E absolutamente emocional. É bem possível que Ava Gardner ficaria satisfeita em conhecer uma história assim, capaz de adaptar a arte para a sua própria vida.
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