Que diferença faz se for verdade? “Mera Coincidência” já falava de fake news em 1997
A frase “se é uma história que pega, vão acreditar nela” ajusta-se com perfeição ao contexto da história contada no filme
“Que diferença faz se for verdade? Se é uma história que pega, eles vão acreditar nela.” Essas são frases bombásticas, politicamente incorretas e que, no entanto, ajustam-se com perfeição ao contexto da história contada no filme “Mera Coincidência”. Os diálogos saíram da boca (e da mente) do personagem Conrad Brean, interpretado por Robert De Niro, que trabalha na Casa Branca ao lado do presidente americano, e cujo cartão de visita diz que ele é um “especialista em crise” – o que, no Brasil, seria chamado apenas de marqueteiro. Aqui vale um aposto para explicar o título original dessa produção. Wag the Dog é apenas um excerto de uma expressão maior em inglês, na qual ironiza o conceito de que abanar o rabo é possível e factível; já abanar o cachorro (wag the dog) é uma visão, no mínimo, impraticável. A ideia é semelhante (e provável inspiração) para um dito conhecido no ambiente jornalístico: um cachorro morder uma pessoa não é novidade alguma; mas se uma pessoa morder um cão, aí sim temos uma notícia!
“Mera Coincidência” gira em torno da campanha política para a reeleição do presidente americano. Popular e bastante tranquilo em relação à vitória, eis que seu nome é envolvido em um escândalo sexual com uma adolescente. A Casa Branca vive momentos de efervescência. Até que Conrad Brean entra em cena para uma ação midiática das mais arriscadas. Brean chama ao salão oval Stanley Motss (Dustin Hoffman), um famoso produtor de Hollywood com experiência e criatividade para criar uma narrativa capaz de desviar a atenção do público. O plano: uma guerra na Albânia que somente o presidente teria condições de resolver. Mas qual guerra? Onde fica a Albânia? Não importa! Graças a Stanley Motss, um mago do cinema, tudo será criado em estúdio e o público estará diante de uma obra-prima recheada de drama, ação e emoção.
Dirigido por Barry Levinson, “Mera Coincidência” foi lançado em 1997, quando a internet ainda começava a se popularizar. Para se ter uma ideia, o Google surgiu somente no ano seguinte e levaria algum tempo para virar sinônimo de “o lugar onde se encontra tudo”. Não havia como checar rapidamente a veracidade de uma informação ou um fato ocorrido do outro lado do mundo. Era perfeitamente crível, portanto, a grande mentira inventada para o desenvolvimento da ação. Não existiam, igualmente, redes sociais como Facebook e Twitter, ferramentas de comunicação criadas sob a égide da liberdade de expressão, mas que, em pouco tempo, tornaram-se também um campo aberto para a disseminação de invenções – no sentido de histórias enganosas.
É sabido que o ambiente político está e sempre esteve associado a um mundo de fantasia, sobretudo quando entramos na fase das campanhas e debates televisivos. O cinema jamais perdeu a oportunidade de contar histórias relacionadas ao tema, o que garante ao público não apenas diversão, mas também uma ótima oportunidade de reflexão. A diferença é que hoje, quando deixamos a fantasia cinematográfica de lado e observamos o mundo real, temos uma noção mais clara – ou no mínimo a desconfiança – de quando estamos sendo manipulados. A verdade faz diferença, sim! Uma história qualquer de uma pessoa que mordeu o cachorro não engana mais ninguém. Aliás, na época em que “Mera Coincidência” chegou às salas de cinema, tais histórias eram chamadas apenas de “acontecimentos fabricados”. Hoje elas são conhecidas como fake news.
Comentários
Conteúdo para assinantes. Assine JP Premium.