Lula e o esgoto

Presidente muda Marco do Saneamento por decreto, atropela o Congresso e atrasa o país; o maior prejudicado é o mais pobre, quem ele alega defender

  • Por Claudio Dantas
  • 05/04/2023 17h07 - Atualizado em 05/04/2023 17h24
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Banco de Imagens/Estadão Conteúdo Cano com esgoto a céu aberto no meio de folhagens. Casas feitas de tijolos atrás. Falta de saneamento básico em bairro de Guarulhos Falta de saneamento básico no bairro Sítio São Francisco, em Guarulhos, São Paulo

Em linha com a sua política de desmontar avanços institucionais obtidos pelo antecessor, Lula editou hoje decreto que modifica o Marco do Saneamento, que, em 2022, garantiu a atração de R$ 72 bilhões em investimentos. De cara, salta aos olhos que o presidente da República pretenda modificar por decreto uma lei aprovada pelo Legislativo e sancionada pelo Executivo. Fato é que o atual mandatário não pode, com uma canetada, desfazer um conjunto de regras debatidas profundamente com a sociedade e que foram aprovadas após todo o rito constitucional. Para tentar amaciar o discurso, o governo diz que apenas atualizou a lei com pequenas modificações. Mas não é verdade. Interlocutores que trabalharam no texto lá atrás me dizem que a caneta vermelha de Lula desmontará toda a estratégia para atrair investimentos privados. Fora que atropela o Congresso, atrasa o país e prejudica o mais pobre, justamente aquele que ele alega defender.

Vejamos:

1 – Antes da aprovação da nova lei em 2020, era proibido privatizar, as empresas estatais assinavam contratos sem licitação com os municípios e atendiam apenas regiões mais ricas, deixando 35 milhões sem água encanada e 150 milhões sem tratamento de esgoto.

2 – O novo marco obrigou o atendimento a 99% de toda a população com água e 90% com coleta e tratamento, com prazo até 2033.

3 – Além disso, obrigou as empresas a seguirem normas de referência da Agência Nacional de Águas e a se regionalizarem, para ganhar escala e aumentar a eficiência (principalmente dos municípios de menor porte). Antes, a União repassava recursos às estatais sem critério algum. Tampouco havia punição para as empresas que não universalizassem o atendimento.

4 – O novo marco cancelou os contratos de quem não comprovou que tinha capacidade financeira comprovada de fazer frente aos investimentos necessários à universalização, e ainda trouxe o dispositivo que, mesmo quem comprovasse, perderia os contratos se, após 5 anos, não tivesse atingido metas proporcionais.

5 – Antes, as empresas podiam contratar obras travestidas de PPPs administrativas  — dispositivo usado apenas para serviços públicos desprovidos de cobrança ao usuário –, o que, na prática, aumentava o valor cobrado ao usuário, com duas empresas sobrepostas.

6 – Se o novo marco limitou esse dispositivo a 25% do total das receitas, por outro lado trouxe incentivos às PPPs patrocinadas, para reduzir o valor cobrado ao usuário quando fosse necessário.

7 – Finalmente, as regras regulatórias do setor eram pouco técnicas e muito políticas, seguindo critérios dos mais diversos e afugentando investidores que não conseguiam compreender as “regras do jogo” a que se submeteriam.

O novo marco tentou inserir racionalidade e harmonização por meio de normas de referência, trazendo segurança regulatória e melhorando o ambiente de investimentos. O decreto de Lula revoga os itens 2 e 6, flexibiliza os critérios do 5 e prorroga o prazo do 4, continuando a repassar dinheiro federal sem critério às estatais até dezembro de 2025. Fora que não se sabe quais serão os “parâmetros para as normas de referência” mencionados, o que ameaça frontalmente o item 7. O risco é chegar a janeiro de 2026 com pouquíssimo investimento realizado, o que pode levar a uma série de cancelamentos de contratos (pela regra dos 5 anos) em 2028. Aí o governo será tentado a mudar a lei para prorrogar o prazo, destruindo o prazo do item 3 da lista. Ou seja, sobrará muito pouco. O novo Marco ficará bem mais parecido ao antigo. O povo seguirá atolado na “lama”.

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