Racismo e literatura: Escritoras dão voz à herança africana no Brasil

  • Por Jovem Pan
  • 11/06/2020 12h15
EFE A poetisa Dinha é uma das autoras negras brasileiras que refletem, por meio de suas obras, os impactos do racismo silenciado no país

O Brasil é o país com o maior número de afrodescendentes no mundo. No entanto, sua herança africana tem sido oficialmente relegada há décadas, e o racismo, silenciado.

Hoje, várias autoras brasileiras estão buscando mudar esse quadro, desde escritoras de ficção consagradas, como Conceição Evaristo, passando pela poetisa underground Dinha, à contadora de histórias infantis Avani Souza Silva. Dar voz à cultura africana no Brasil e combater a discriminação racial é o compromisso literário dessas mulheres.

Negra e periférica

Dinha – apelido da escritora Maria Nilda de Carvalho Mota – define-se como uma “mulher negra e periférica” que encontrou na literatura um refúgio onde “ninguém pode calar” sua voz.

Sua poesia, segundo suas próprias palavras, é um alto-falante para justificar a história do povo afro-brasileiro, condenado ao “silêncio” e reduzido à “escravidão” em um país de 210 milhões de habitantes, onde mais da metade da população é negra.

Dinha passou boa parte de seus 42 anos denunciando “um genocídio contra a população negra”. Enquanto estudava Letras na Universidade de São Paulo (USP), Dinha fez parte de movimentos sociais ligados à cultura hip hop na periferia de São Paulo e encontrou uma situação “horrível” e “vergonhosa” em relação à falta de estudos sobre literatura africana e afro-brasileira no currículo da faculdade.

A consciência desse déficit a marcou para sempre. “Sei que escrever não é suficiente, mas é uma parte importante da formação do imaginário social”, disse.

Em seu último livro de poemas, “Maria do povo” (Edições Me Parió Revolução, 2019), ela quis homenagear “pessoas comuns”, sem deixar de lado questões de gênero, raça e classe, que são sempre pontos fundamentais em sua obra.

Em 2015, ela publicou um livro que a colocou no radar da poesia independente e a tornou uma referência no movimento negro: “Zero a Zero: 15 poemas contra o genocídio da população negra”, no qual denuncia a violência machista e policial.

Segundo a poetisa, as primeiras conquistas na luta contra o racismo foram deixar de lado “a visão eurocêntrica” e deixar de “resumir a escravidão” à história dos povos africanos e seus descendentes “no Brasil e no mundo”.

Contos africanos

Avani Souza Silva, 67 anos, é autora de “A África recontada para crianças” (Martin Claret Editora, 2020).
O livro ilustrado, que acaba de ser lançado, traz fábulas contadas nos cinco países africanos de língua portuguesa (Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Guiné Bissau, Moçambique e Angola) com o objetivo de trazer à população brasileira a cultura africana “que sempre foi esquecida” no Brasil.

Um exemplo é o “Ti Lobo”, de Cabo Verde, muito diferente do animal feroz pintado em fábulas europeias. Esse lobo africano alimenta-se de figos e é uma figura alegórica da seca e da fome que assolou o arquipélago durante gerações.

“A formação étnica do povo brasileiro é composta por três povos: o europeu, o africano e o indígena”, mas, em contraste, nas escolas do país “a história e a literatura da Europa sempre foram estudadas”, afirmou ela. Por outro lado, acrescentou, “basta olhar para os brasileiros” para perceber que “o brasileiro é negro” e “africano”.

Avani contou ainda que, antes de chegar à USP, onde se formou em Letras Clássicas e Vernáculas, “não tinha contato com o continente africano” e “sequer lido nenhum autor africano”, algo comum entre “a maioria do povo brasileiro”.

No entanto, ela acredita que, nos últimos anos, o Brasil deu um “grande passo” após aprovar duas leis, em 2003 e 2008, que tornaram obrigatório o ensino de história e cultura africana e indígena nos programas de educação básica do país.

Apesar de ainda ser uma realidade “muito incipiente” nas escolas brasileiras, que carecem de material didático e investimento na formação de professores, ela se mostra convicta da necessidade de divulgar as culturas africanas e indígenas para combater o racismo.

“Respeitá-la (literatura africana), amá-la, perceber a identidade cultural que temos com alguns países africanos é muito importante” para “ter mais tolerância”, declarou.

De empregada doméstica a escritora premiada

Afrobrasilidade, raça, gênero e classe também são temas que preencheram as páginas da obra de Conceição Evaristo, ex-empregada doméstica que se tornou um ícone do movimento negro no Brasil antes mesmo de receber o prêmio Jabuti em 2019.

Entre suas obras mais conhecidas está o romance “Ponciá Viencio” (Mazza, 2003), onde a escritora narra a trajetória de vida de uma jovem negra e pobre mulher em busca de sua identidade.

“Faço parte de uma geração que, na escrita, busca muito a afirmação de uma identidade negra” e “conta com orgulho essa identidade”, disse a escritora, de 74 anos, em entrevista ao centro Itaú Cultural.

Através da literatura, ela pretende revelar sua “subjetividade como mulher negra na sociedade brasileira” e “lutar para criar textos que se distanciem da literatura que nos estereotipa”.

Ao criar “outro imaginário” que se distancia da “ideologia que a sociedade” tem da população negra, a escritora defende que a principal função de sua obra é atuar como “vigilante”.

*Com EFE

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