Ícone na luta por direitos, Afonsinho é contra volta do futebol no Brasil: ‘Absurdo’
Afonsinho é do tempo em que o futebol era mais inspiração e menos transpiração. Treinar em apenas um período permitiu que o craque de Santos e Botafogo nos anos 1960 e 1970 terminasse o curso de Medicina na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Ficou marcado por usar barba e cabelo compridos em plena ditadura militar. Fora de campo, era próximo de músicos como Gilberto Gil, Moraes Moreira e Paulinho da Viola. Ganhou até canção em homenagem – Meio de Campo, de Gil.
Fundamental na luta por melhores condições de trabalho, ele se tornou o primeiro jogador a ter passe livre no Brasil. Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, o ex-meio-campista falou sobre a quarentena em Paquetá, no Rio de Janeiro, e a expectativa por profundas transformações no futebol, modalidade que vê com descrédito, mecanizado como um videogame. Na opinião de Afonsinho, é absurda a ideia de pensar em abertura do futebol nacional neste momento da pandemia do novo coronavírus.
Confira a entrevista abaixo:
Como está sendo esse período na quarentena?
Em isolamento, saindo só para ir ao mercado. Vivo com minha companheira apenas. Paquetá, na teoria, seria fácil de isolar, por ser uma ilha, mas o problema da sociedade na pandemia é a ignorância, a falta de senso crítico. Sigo acompanhando o esporte pela tevê e aproveitando para ler.
O que está lendo?
Ganhei da minha filha o livro Um Defeito de Cor, da Ana Maria Gonçalves. É como tenho conseguido manter o equilíbrio emocional, que acho que é o mais complicado nesse período. Terminei agora também o Ruptura (Manuel Castells), que fala sobre a crise na democracia liberal, explica muito do que estamos vivendo.
Você, que é médico, como tem visto o Brasil na pandemia?
É um problema global. Algumas organizações que cuidam dos problemas comuns da humanidade, no caso da saúde a OMS, deveriam ser o ponto de encontro de informação. Mas vejo uma dificuldades das pessoas se informarem de maneira segura, e aí fica essa maluquice, um desastre completo.
O que achou do encontro dos presidentes do Flamengo e do Vasco com o Bolsonaro?
Não há a menor condição de pensar em abrir. É um problema sério. O futebol tem importância muito grande social, econômica e politicamente. A pandemia é uma questão sanitária, de saúde universal. O momento político é desastroso. Essa história de já pensar em abertura aqui é um absurdo. Tem que usar a inteligência para ver as melhores condições. Abrir no Brasil, com o nível de desorientação, é desumano. Não temos condições nem com protocolos específicos.
O que acha do futebol brasileiro atualmente?
Ando muito desencantado. É algo muito doloroso porque a minha vida sempre foi em volta da bola. Por escrever na Carta Capital uma vez por semana, acompanho o futebol para não ficar por fora. Mas para mim o futebol de hoje parece um jogo eletrônico. Ficou mais do que mecanizado, ficou eletronizado. Já é difícil saber na TV se é videogame ou não. É um jogo muito preso, muito contido. Salva um ou outro jogador genial. A falta de liberdade do jogador hoje é muito grande. De certa forma é um reflexo da sociedade. É uma face boa para analisar o nosso momento de vida
A falta de liberdade do jogador também se estende para fora de campo. Falta consciência de classe a essa nova geração?
Faz muita falta o posicionamento dos atletas. O jogador é um interlocutor de grande alcance. Não tem dúvida que é um problema Mas também não acho que seja alienação. É coerente com o que vivemos. Historicamente o jogador se posicionou. Primeiro, para se sindicalizar. Depois, tive meu episódio com o passe livre. Depois veio a “Democracia Corinthiana”, apareceu o Bom Senso. Hoje existe essa retração pelas condições de o cara ficar isolado, de ser blindado por assessores, empresários.
O que você sugere para endireitar os clubes sem prejudicar os atletas?
Existe um desacerto que em algum momento vai parar. O Flamengo, Palmeiras, Grêmio… O Bahia, também, todos esses parecem estar se organizando. Mas vai ficar cada vez menor o número de clubes organizados. O exemplo de descalabro é o Cruzeiro, que é um grande clube. Não vai continuar indefinidamente assim, acredito. O problema tem que desabrochar. Como um tumor. Hoje a gente ouve os clubes da elite receberem fortunas e ao mesmo tempo dever salário para jogador, que é uma despesa fixa. Como pode?
Faltam melhores profissionais para administrar o futebol?
Existe hoje uma hiperconcentração de renda de alguns clubes. E isso é Mundial. Acho que tem solução porque senão não acreditaria na humanidade. Os Estados Unidos e a China, os países mais ricos do mundo, investem cada vez mais no futebol e não é à toa. O futebol é um dos grandes negócios da sociedade moderna. Mas há um desacerto.
O que acha que mais mudou no futebol nos últimos anos?
A Copa do Mundo não é mais onde se vê o melhor futebol. Tanto é que ela acontece ao final da temporada europeia, quando os jogadores estão estourados. A maior qualidade do futebol está na Champions, onde há essa hiperconcentração de renda que comentei, com verdadeiras seleções mundiais. A Fifa já percebeu isso e criou um novo campeonato mundial de clubes, mais um degrau da globalização.
Você acha que a pandemia mudará algo nesse cenário?
Vai mudar, sem dúvida. Mas ainda é impossível saber até onde. Espero que as relações fiquem menos desequilibradas, que seja mais democrático.
Financeiramente, você diz?
Não é legal para mim falar quanto o jogador ganha ou deixa de ganhar. Mas precisa haver equilíbrio maior em relação a isso. Luto para que os jogadores sejam valorizados, Mas voltamos à questão fundamental de tudo: a distribuição da riqueza precisa ser mais igual. A gente vê clubes pendurados para pagar altos salários e outros com dificuldade para voltar a ser competitivo. Meu clube de origem, o XV de Jaú, que tem história bonita, está sem calendário. Você pode chamar de profissional um jogador que só tem garantia de emprego durante três meses? Profissional tem que ter as condições de viver e sustentar a família de sua profissão.
O que tem achado da Seleção Brasileira com Tite?
Me confessei, embora me custe, desencantado. O futebol é coletivo, quanto mais atuar junto e em equipe, melhor será o resultado. E hoje em dia não há mais espaço para que se monte uma seleção nacional, não existe espaço no calendário para que os jogadores se conheçam.
E sua vida, como acha que vai ser depois da pandemia?
Espero poder visitar os netos, encontrar os amigos e voltar a bater a minha pelada duas vezes por semana.
Na pelada você joga do que?
Sou assistente de lateral e de ponta (risos). Não chego na linha de fundo nem de um lado nem do outro lado. Engano no meio do caminho.
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