A partida da morte na Ucrânia

  • Por Mauro Beting/ Jovem Pan
  • 23/05/2018 10h25 - Atualizado em 23/05/2018 10h25
Reprodução Estádio de Kiev vai receber final da Liga dos Campeões

Nikolai Trusevich era um goleiro à frente de sua época quando chegou ao Dínamo de Kiev, clube que tinha apenas nove anos de existência naquele 1936. Jogava adiantado – o que era inusitado. Gostava de trabalhar com os pés – o que era ainda mais raro para um goleiro. Uma figura que adorava fazer defesas com os pés em vez das mãos. Aproveitando assim pra lançar os companheiros de time num balão. Um artista carismático debaixo das traves, além delas – e do próprio tempo.

Ele conseguira sobreviver à Grande Fome que matara mais de 7 milhões de ucranianos, em 1932-33. Não a uma bala na nuca, em fevereiro de 1943, no campo de extermínio nazista na Ucrânia, em Siretz. Ele e mais dois colegas jogadores do FC Start morreram como milhares naquele dia de revanchismo alemão com a derrota iminente no front ucraniano. Soldados invasores escolhiam um em cada três prisioneiros. Derrubavam pelas costas o mercado para morrer. No chão, atiravam na nuca dele. Trusevich, o zagueiro Klimenko, e o capitão do FC Start – Kuzmenko – foram mortos naquele dia. Companheiros do clube que montaram para sobreviver na Kiev ocupada pelos alemães desde 19 de setembro de 1941.

Trusevich estava escalado para participar meses antes do jogo de reinauguração do estádio onde neste sábado será a final da Champions de 2018. A partida entre o Dínamo de Kiev dele e o CSKA Moscou seria em 22 de junho de 1941. Horas depois da invasão nazista no país que levaria à queda de Kiev quase três meses após o início da Operação Barba-Roxa. Não havia clima. Não houve jogo. Por mais de um ano.

Em novembro de 1941, mais de 100 mil cidadãos de uma população de 400 mil já tinham sido executados pelos nazistas. Os atletas do Dínamo não tinham conseguido deixar Kiev assim que a guerra começara. Oficialmente eles trabalhavam para a NKVD, a polícia secreta comunista, que os empregava para jogar pelo Dínamo. Os próprios chefes os chamaram de “desertores” pela intenção de fugir antes da chegada dos nazistas…

Todos os atletas do Dínamo foram detidos quando Kiev foi ocupada. Nenhum assassinado. Alguns foram liberados semanas depois por assinarem documentos se comprometendo a se virar pelas ruas comendo sopa de grama, ratos, cascas de árvores, pedaços de couro. O que sobrava na prática de extermínio de um país de “subumanos” para Adolf Hitler.

Vagando por Kiev o goleiro e ídolo local foi reconhecido por um dono de uma fábrica de pães. Grande fã de futebol, ele conseguiu levar o ídolo para trabalhar e morar na padaria. Nas semanas seguintes, já melhor alimentado, Trusevich conseguiu entrar em contato com ex-colegas de Dínamo que também teriam suas regalias como funcionários da fábrica. Em pouco tempo se juntaram rivais do Lokomotiv. Nas raras horas de folga nos turnos de 24 horas, eles batiam uma bolinha e esqueciam a rotina.

O novo time

Em maio de 1942, a estratégia nazista era se entender melhor com a população subjugada. Quatro escolas foram reabertas. Seis linhas de bonde voltaram a operar na Kiev precursora mundial do bonde elétrico. Até um café com banda de jazz estava funcionando. Toque de recolher foi relaxado. As pessoas conseguiam sair da cidade para visitar parentes.

Em 8 de julho foi inaugurado um novo estádio. Montaram um time de futebol com gente local. O Rukh. O dono do clube era um ex-atleta ressentido com o Dínamo por não ter conseguido atuar na maior força do futebol local. Shvetsov era o nome dele. Desde a invasão, um colaborador do novo regime.

O campeonato nacional recomeçou. Era um ótimo jeito de dar circo à população. O pão, quando chegava, era de fábricas como aquela onde estavam os atletas reunidos pelo ex-goleiro do Dínamo.

Por que não montar, então, um time para jogar o torneio com os funcionários da fábrica de pães?

Um novo começo

FC Start foi o nome escolhido. Também significa “começar”. O difícil seria arrumar uniforme. Eles tiveram a sorte de encontrar um jogo de camisas de lãs. Vermelhas. Os calções foram improvisados com calças cortadas nos primeiros jogos. O ex-ponta-direita do Dínamo Gonchadenko havia guardado as chuteiras dos ótimos tempos recentes. Os outros 10 jogavam com o que tinham de calçados. Alguns até com botas.

O primeiro jogo foi contra o Rukh. O time do dono colaboracionista. O que não gostava do Dínamo. Seus atletas eram mais jovens. Tinham uniforme completo e chuteiras. Trabalhavam menos e estavam melhor alimentados. Mas não tinham o talento dos veteranos fábrica de pães. Placar final: 7 x 2 Start.

O patrão colaboracionista do Rukh jogou sujo. Conseguiu que o Start não atuasse no estádio novo. E ainda tentou cooptar os atletas do time vencedor para reforçar a sua equipe. Ninguém quis deixar a padaria. Tiveram que treinar e jogar no campinho péssimo do Zenit.

O que não os impediu de ganhar jogos e mais torcida. Unindo o povo que só ali conseguia vencer clubes ucranianos e outros compostos por romenos e húngaros.

Também havia uma equipe de alemães na Ucrânia ocupada. Ligada à Luftwaff – a força aérea nazista. Time forte fisicamente, bem preparado, e sobretudo descansado, sem turnos de 24 horas de trabalho.

Flakelf

Em 6 de agosto de 1942 aconteceu o jogo entre o Start e o Flakelf alemão. 5 x 1 Start.

O espírito de revanche foi incendiado com a mesma facilidade com que nazistas e comunistas atearam fogo durante a queda de Kiev.

Em 9 de agosto de 1941 a nova partida foi anunciada pelo jornal colaboracionista, no campo do Zenit. Soldados alemães ocuparam as melhores arquibancadas. Mais de duas mil pessoas foram contadas.

Pontapé inicial

O FC Start foi a campo depois do time alemão, desta vez reforçado por atletas melhores de outras partes da Ucrânia ocupada. Os 11 do Flakelf e mais 11 reservas fizeram o “heil, Hitler” saudando o Fuhrer. A equipe com 11 jogadores ucranianos com malhas muito pesadas para o calor das 17h30 de verão em Kiev, sem nenhum reserva, mas já com calções e meias e calçados mais apropriados, se perfilou à frente das autoridades nazistas e também ergueu o braço direito. Mas para botar a mão no peito e gritar:

– FITZCULTHURA!!

Era uma saudação soviética muito usual. Uma mistura em russo de “preparo físico” ou “fisiculturismo” com a clássico internacional “hurrah!”. O significado era preciso: mais do que a vitória e a competição, o que importava era viver melhor e aprender mais a partir da educação física que deixava a mente e o corpo saído.

Vida longa ao esporte

Muitos historiadores contestam a versão de que os ucranianos do FC Start gritaram algo. Mas ninguém os ouviu ou viu fazer a saudação nazista. Foram à luta.

O Start quis jogo. Mas não queria nova goleada. Achou mais prudente ganhar de pouco. Sem humilhação.

O Flakelf marcou o primeiro gol depois de agredir o goleiro Trusevich em falta não marcada pelo árbitro alemão. O Start respondeu na bola ao jogo mais duro dos rivais. O time voltou ao vestiário no intervalo com uma virada por 3 a 1.

Na segunda etapa, o Start não ganhou. Fez mais gols, mas concedeu outros dois. Placar final: Start 5 x 3.

Partida da Morte

A lenda que foi por décadas propagandeada pelas autoridades soviéticas era de que a bravura e coragem dos 11 jogadores do Start foi punida no ato. O árbitro seria um oficial da SS que teria alertado os atletas do FC Start para que não tentassem ganhar a partida… Eles foram pro pau e ganharam a revanche. Logo depois do apito final, teriam sido presos pelos nazistas ainda no vestiário, e executados horas depois na mesma ravina onde mais de 33 mil judeus foram mortos na primeira quinzena depois da tomada de Kiev.

O fato que todas as versões posteriores confirmam: nada aconteceu nos primeiros dias com os jogadores do Start. A não ser mais uma revanche diante do time colaboracionista. O Rukh perdeu ainda mais feio. 8 x 0. O dono da equipe ficou ainda mais pistola. Shvetsov procurou novamente as autoridades alemãs e disse que aquela insolência teria de ser punida com rigor. Teria dito também que muitos dos jogadores do FC Start seguiam com o trabalho de espiões aprendido nos anos de Dínamo.

A queda

Oficiais da Gestapo chegaram até a fábrica de pães em 18 de agosto. Nove dias depois da revanche. Ocuparam o escritório do dono e foram chamando um a um os jogadores do Start. Eles foram detidos e levados a sessões de interrogatório e tortura na sede da Gestapo em Kiev.

Foram 22 dias assim até serem levados ao centro de extermínio de Siretz, em setembro de 1942. Dez dos 11 foram para lá. Um deles foi executado ainda em Kiev. Com medo de a família ser exposta, a própria irmã do atacante Korotkykh delatou aos nazistas que o irmão atacante havia sido oficial da NKVD, a polícia secreta soviética na Ucrânia. Ele foi assassinado no começo dos 22 dias de tortura. Período em que as autoridades nada conseguiram saber dos sobreviventes do Start.

Resistência

As tropas alemãs não resistiram ao “General Inverno” e se renderam às portas de Stalingrado, em 31 de janeiro de 1943. A Rússia voltava ao ataque, também rumo à reconquista de Kiev.

No campo de concentração de Siretz, os comandantes indicavam a solução final para tantos prisioneiros. Matavam ainda mais a esmo. Kuzmenko, o capitão do Start, foi o primeiro a tombar, em 24 de fevereiro de 1943. Klimenko foi o segundo executado com um tiro na nuca, minutos depois. O grande mentor do time foi o último. Vestindo a mesma malha vermelha e preta de goleiro já em farrapos, Trusevich também caiu.

Foram quatro os mortos entre os 11 do FC Start. Um deles ainda desapareceu: o artilheiro Komarov teria colaborado com os nazistas, foi libertado e nunca mais foi visto pelos colegas de fábrica e de equipe.

Sete meses depois das execuções em Siretz, Kiev foi libertada pelos soviéticos.

Em 1971, um monumento aos quatro atletas do Start foi construído na frente do estádio do Dínamo de Kiev. Homenagem aos assassinados depois de nove vitórias em nove jogos. Com 56 gols marcados e 11 sofridos.

Time da maior e mais corajosa vitória da história do futebol. Aquela que mais incentivou uma torcida a acreditar, resistir, lutar e ir ao ataque.

A partida da morte.

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