A revanche da paz em Kiev

  • Por Mauro Beting/ Jovem Pan
  • 22/05/2018 10h49
  • BlueSky
Reprodução Kiev recebeu a final da da Liga dos Campeões 2017/2018

A final de sábado será no estádio que era para ter sido inaugurado em 1914 não fosse a Primeira Guerra Mundial. A Revolução Russa em 1917 adiou a obra até a construção do então chamado Estádio Vermelho, em 1923. Em 1941 ele foi ampliado para 50 mil lugares. Quando seria reinaugurado em um amistoso entre o Dínamo de Kiev e o CSKA Moscou, a Alemanha invadiu horas antes a Ucrânia, na Operação Barba-Roxa. Não houve jogo. O campeonato nacional foi suspenso na quarta rodada. Só voltaria na temporada seguinte. Com o país dominado pelos nazistas.

O código de invasão das forças alemãs era “Dortmund”. Cidade do Borussia, de onde veio o treinador Jurgen Klopp para levar o exército vermelho de Liverpool para tentar a primeira conquista da Europa desde o vice de 2007. Pentacampeão europeu da terra de onde nasceu o futebol. Da cidade onde alguns marinheiros chegaram ao porto de Odessa para trazer o futebol para a Ucrânia, em 1878.

Kiev (que só seria a capital em 1934) tinha desde 1927 um grande time, ligado à polícia – e também à secreta, a NKVD. O Dínamo que seria a base do Start, o time da resistência ao domínio alemão – em outro post conto mais a respeito do “jogo da morte” de 1942.

O mesmo palco que será o front da luta entre ingleses e espanhóis no próximo sábado acabou servindo de foco da frouxa resistência kievana durante os dois anos de ocupação brutal e barbarie nazista. Muitos atletas e familiares tentaram deixar Kiev na tomada da capital que se completou oficialmente em 19 de setembro de 1941. Como o clube era formalmente ligado à polícia secreta comunista, imaginavam os jogadores que seriam as primeiras vítimas dos invasores. Não foram atendidos pelos comandantes ucranianos, que os consideravam “desertores” se embarcassem nas balsas que desciam o rio Dnieper até o mar Negro. Por “sorte” naquele oceano de azar também não foram executados como seriam sumariamente os judeus e muitos habitantes de uma população que era de 400 mil pessoas na cidade e teria apenas 80 mil quando ela foi libertada pelos soviéticos, 778 dias depois.

Não foram apenas os alemães que dizimaram Kiev como os mongóis haviam feito no século 13. Quando os soviéticos deixaram a cidade, praticaram a política de terra arrasada. Queimaram edifícios e destruíram então a maior hidrelétrica europeia. Só para não deixar algo para os nazistas.

Adolf Hitler arrasou a Ucrânia como projeto de “reconstrução”. Em um ano ele pretendia os ucranianos deportados para a Alemanha como escravos ou mortos ali mesmo por inanição ou doenças nos campos de concentração e extermínio. Quem não era assassinado sobrevivia comendo ratos, pedaços de couro ou sopa de grama. Pombas eram dizimadas pelos nazistas para que não servissem de alimento ou para não serem utilizadas como correio pela resistência.

Em fevereiro de 1942, milhares de ucranianos foram para a Alemanha recrutados para trabalhos forçados. A grande maioria não voltou. Em dezembro, o Fuhrer acelerou o processo no país. Também contra mulheres e crianças. Ele queria criar uma raça mais “pura” no país. As mulheres que tinham filhos ucranianos eram incentivadas a abortar. Para os nazistas, quem nascia no país era “subumano”.

Kiev só voltou ao domínio soviético em 6 de novembro de 1943. Pouco depois de soldados nazistas desenterrarem e queimarem mais de 70 mil corpos dos judeus chacinados em Babi Yar para não deixar vestígios das atrocidades. Quando da retomada da capital da Ucrânia, a estratégia de terra arrasada também foi adotada pelos alemães. Se eles haviam tomado uma cidade combalida em 1941, a devolveriam ainda pior em 1943.

Não foi por um resgate histórico ou uma reparação devida a final de 2018 ser na Ucrânia, em Kiev. Não foi por isso que Michel Platini assim definiu a festa de sábado. Foi por política mesmo. Nem a população conseguirá usufruir de um clima que até agora é mais envelopado e inflado pela UEFA, patrocinadora e mídia. Mas é ótimo numa Europa tão convulsionada e conturbada relembrar como já foi muito pior. E não há tanto tempo. Maravilhoso que venham em missão de paz os exércitos vermelhos de Liverpool e brancos de Madri.

O futebol é uma benção. O palco dessa comunhão será o estádio Olímpico de Kiev que hoje fisicamente lembra o Maracanã. Também passou por várias reformas como aquele que já foi o maior do mundo. Lá teremos o jogo que irá celebrar aquela partida inaugural que em junho de 1941 a guerra não deixou acontecer. Que a paz de 2018 prevaleça. Mesmo com tanta gente brincando com ela.

  • BlueSky

Comentários

Conteúdo para assinantes. Assine JP Premium.