Ex-ginasta Lucas Altemeyer dá detalhes sobre abusos de ex-técnico da seleção
Mais de 40 ginastas e ex-ginastas alegam terem sido vítimas de algum tipo de abuso físico, moral ou sexual por Fernando de Carvalho Lopes, que fez carreira no Mesc e, por dois anos, integrou a comissão técnica da seleção brasileira masculina de ginástica. Acabou afastado a um mês da Olimpíada do Rio.
Aos relatos de Petrix e Lucas se seguiram uma série de consequências: Fernando foi afastado também do Mesc, o Comitê Olímpico do Brasil (COB) cobrou explicações da Confederação Brasileira de Ginástica (CBG), que ameaça perder patrocínio da Caixa, e alguns personagens secundários acabaram envolvidos, como o coordenador de seleções da entidade, Marcos Goto, técnico atual do medalhista olímpico Arthur Zanetti e treinador de Lucas durante a passagem do ex-ginasta por São Caetano.
Lucas, que conviveu com Fernando de 2003 a 2005, topou falar também com o Estado. Falou que, no primeiro ano, não sofreu investidas do ex-treinador, mas que, aos poucos, notou algo de estranho no comportamento dele. Confira a entrevista a seguir:
Quando você chegou ao Mesc, logo percebeu as atitudes do Fernando?
“Não, inicialmente ele não fazia. Quando cheguei, a atitude dele sempre foi de querer ser amigão, saber de coisas particulares. Queria ser pai, amigo. Ele era muito envolvido com religião, rezava com a gente. Então passava uma confiança de pessoa boa. E falava: ‘Gente, quero ser tão amigo de vocês que quero dar um abraço’. Depois, queria dar beijo no rosto. Quando ele começou a falar isso, estranhei. Um dia ele veio me perguntar e falei: ‘Não, Fernando, não gosto de beijar nem meu pai no rosto porque ele tem barba, me incomoda, por que eu iria querer beijar o seu?’. Às vezes, treinávamos de sexta à noite, depois, tinha treino sábado de manhã. E ele falava que poderíamos dormir na casa dele, para não precisar acordar tão cedo. Porque muitos moravam longe. E ele dormia abraçado com o Petrix. Aquilo me fez pensar. Aí, com o tempo, comecei a observar que ele tocava nos meninos nos treinos. Como eu tinha treinado com outros técnicos, tinha certeza de que não havia necessidade de tocar daquele jeito. E ele sempre levava para esse lado da amizade, perguntava: ‘Você já beijou uma menina?’, ou ‘Já tocou no peitinho da menininha?'”.
Sempre tentava jogar o papo para o lado sexual, né?
“Sim, ele entrava nesses assuntos. Aí, até para conquistar a gente, ele até falava: ‘Se quiserem, eu deixo vocês dirigirem o carro, vou ensinar’. Poxa, tudo que um moleque sonha em fazer: dirigir, conversar com um adulto sobre sexo. Talvez, ele entrasse nessas áreas para tentar conquistar nosso respeito.
Com você, quando aconteceu pela primeira vez?
“Foi num movimento que a gente chama de esquadro a parada. Os novos na ginástica não conseguem fazer (sozinhos), requer muita força de ombro, uma técnica certa. Então, o técnico precisa modelar a criança para fazer. Todos os técnicos colocam uma mão no ombro, para não deixar a criança avançar muito, e outra na perna, para a elevação. Ele fazia o movimento e quando chegávamos na parada de mão, ele escorregava a mão dele até o nosso pênis, entendeu? Ou descia e ficava segurando as nádegas por muito tempo. E tinham outros movimentos na argola. Tem um chamado maltesa, que é como se fosse uma prancha. O atleta fica com o corpo na horizontal enquanto se sustenta no ar. Os técnicos sempre deixam uma mão no ombro e outra no pé. O Fernando colocava a mão no meio do órgão genital do moleque para segurar. Aí, quando ele ia me ajudar, eu caía e falava: ‘Bateu, bate, bateu, velho, toma cuidado’, como se tivesse doído o toque, para assustá-lo.
Ele se irritava com você diante dessas atitudes?
“Inicialmente, não. Ele ficava meio constrangido, dava uma risada e falava: ‘Foi mal, não era minha intenção’. Uma vez ele teve a coragem de dizer: ‘Pô, toda hora que eu encosto sem querer, dói? Você deve estar na maturação, né, deve estar sensível!’. Eu falei: ‘Não sei, Fernando, mas bateu e doeu. Por favor, não faça mais isso, bota a mão em outro lugar, mas não lá’. Então ele se irritou, mas não de brigar. Falou: ‘Então tá bom, você só treina com o auxiliar’.
O que passava na sua cabeça na época? Qual medo tinha de contar isso a alguém próximo?
(Pensa um pouco e suspira antes de iniciar a resposta). Foi algo que veio crescendo, sabe? Uma vez em que reclamei, perguntei por que ele botava a mão lá, ele disse: ‘Eu sei o que estou fazendo, sou um profissional formado e lá é o centro de gravidade, o lugar mais fácil (para auxiliar no exercício). Ele também reclamava que não era tão forte, que tinha vindo do vôlei, não era ex-atleta. ‘Se eu fizer como vocês estão pedindo, ao final da semana eu não tenho ombro’, ele falava. Aí a gente ficava um pouco confuso. Tipo, eu pensava: ‘Eu não sei nada, talvez ele tenha razão’. Com o tempo, outros meninos foram parando (de treinar) e diziam que haviam contado aos pais e eles não tinham acreditado. Porque antes do abuso, tinha muita reclamação contra o Fernando por ele ser rígido demais. Então, penso que os pais achavam que era só mais uma reclamação.
Nem com seu irmão você tinha vontade de se abrir (André Altemeyer também havia sido ginasta e trabalhava como treinador no ABC)?
“Vontade, não. Eu tinha medo. Minha família sempre foi aberta para muita coisa, mas em relação à sexualidade, não. E eu tinha vergonha de falar o que tinha acontecido comigo. Quem não praticava ginástica já via a gente como gay, às vezes como pessoa que fazia balé, por ser muito delicado. Então imagina. Eu já era o zoado no colégio por ser o ‘Balé’, eles me chamavam assim. Na rua, também, eu era o ‘viadinho’ que fazia ginástica, a gazela saltitante, essas paradas. Aí agrega com essa coisa do cara tocar em mim. Pensava: ‘Nem f*** que vou me abrir com alguém, vou ficar na minha'”.
Além dos toques, o que mais você viu de abusos?
“Quando ia tomar banho, era com os meninos mais velhos, que estudavam no mesmo horário. A gente entrava, dava três minutos, o Fernando chegava, falava que ia fazer xixi, puxava uma conversa, vinha abrir a porta e via a gente tomando banho. E no meio do banho, ele sempre entrava no assunto do ‘quando maturar esse peru, me avisa, precisa me mostrar, porque aí vou precisar mudar o treino’. Ou ele comentava em relação ao tamanho. Virava e falava: ‘Nossa, tá crescendo né?’. Cara, a gente ficava muito constrangido. Aquele momento me dava nervoso. Dos toques, eu sabia me defender, mas ali não dava para sair da situação. Naquele momento eu não conseguia encontrar nenhuma forma de evitá-lo. O que começamos a fazer foi encontrar soluções do tipo combinar que o banho duraria o menos possível. Nem lavava o cabelo.
Você encontrou o Fernando alguma vez depois que saiu do Mesc?
“Depois que fui para São Caetano, a gente sempre se trombava em competição. Às vezes, ele dava ‘oi’, às vezes, nem olhava na cara. Para mim, não fazia nem questão. Preferia evitar”
Diz-se que corriam boatos no meio e algumas pessoas, como a psicóloga que trabalhava no Mesc e o Marcos Goto, treinador em São Caetano, sabiam. O que você ouvia depois que passou a treinar com ele?
“Eu nunca contei nada para ele, então, comigo, nunca houve essa conversa. Às vezes, ele brincava dizendo: ‘Ah, quer treinar com o Fernando?’, mas não era no sentido dos abusos. Era porque ele achava que o Fernando dava um treino mais light, que era um treino mais fácil”.
Mas você ouvia ele brincar com outros ginastas que tinham vindo de São Bernardo?
“Não, porque aqueles meninos treinavam em horários diferentes. E quando era junto, treinavam com um técnico auxiliar, e a gente ficava com o Marcos. Eu nunca vi ele fazer essas brincadeiras, e olha que eu sei que ele é piadista. E sobre a psicóloga, quando eu estava no Mesc, a gente não tinha psicóloga, então não tenho nada para falar sobre ela”.
Se você ficasse frente a frente com o Fernando hoje, o que diria a ele?
“Acho que ele foi muito cínico. Mas eu não tenho nenhuma vontade de falar com ele. O que ele fez é tão desprezível que não merece nem a minha palavra”.
Comentários
Conteúdo para assinantes. Assine JP Premium.