Constituição seria a ‘carta da democracia’ se a soberania do povo fosse respeitada de verdade
Por mais criticável que seja a Carta Magna de 1988, que já sofreu mais de 120 emendas, seu texto ainda é a base de um regime republicano que precisa ser aprimorado institucionalmente
A visão estratégica do jornalismo pode e deve dar uma contribuição decisiva para a construção cultural e histórica. O pioneiro do jornalismo brasileiro, Hipólito José da Costa, foi premonitório sobre um problema estrutural e psicossocial brasileiro, muito antes de o Brasil se tornar “independente”. Ao lançar, em Londres, em maio de 1811, seu “Correio Braziliense”, Hipólito da Costa reclamou sobre o quanto é difícil uma “democracia” (o tal governo do povo, pelo povo e para o povo): “Ninguém deseja mais do que nós as reformas úteis; mas a ninguém aborrece mais do que nós que essas reformas sejam feitas pelo povo; pois conhecemos as consequências desse modo de reformar; desejamos as reformas, mas feitas pelo governo; e urgimos que o governo as deve fazer enquanto é tempo, para que se evite serem feitas pelo povo”.
A polarizada e radicalizada campanha eleitoral de 2022 gerou uma discussão sobre “democracia”. Novamente, como de mau costume ou vício intelectual brasileiro, a palavra é usada e abusada sem que fique claro qual o seu real conceito original e em qual contexto social, cultural, político e histórico pode ser aplicada. Como se pode afirmar que “todo poder emana do povo, que é soberano”, se nós, o povo, efetivamente não somos ou não conseguimos ser o protagonista do jogo político? Uma análise objetiva, concreta e verdadeira da história demonstra que o povo brasileiro tem sido um mero figurante ou espectador da “democracia”. No máximo, somos obrigados a votar, de tempos em tempos. Votar é um mecanismo de escolha, e não a “democracia” por ela mesma. O povo não é, de verdade, “dono do poder”. Somos (e aceitamos ser) tutelados pelos “eleitos” nossos representantes.
Por isso, algumas perguntas são indispensáveis para os brasileiros se fazerem e responderem, com a máxima correção e sinceridade: temos, realmente, “democracia” no Brasil? Se temos, ela está ameaçada? Como e por quem? Se não temos, estamos no caminho certo para construí-la, conquistá-la e consolidá-la? O povo tem capacidade de vencer a oligarquia? Ou a pequena facção que detém a hegemonia do poder continuará mandando? Como se pode defender e garantir a supremacia do bem público, a hegemonia do bem comum do povo, acima de todos os interesses privados, sem sucumbir à vontade da oligarquia que sempre se sentiu a “dona do poder” no Brasil? Como instituir a verdadeira e plena soberania popular, com base em três princípios do Estado de Direito: legalidade, legitimidade e liberdade? Por que os “representantes eleitos” não nos deixam praticar, livremente, as manifestações de soberania popular (previstas no artigo 14 da Constituição de 1988): o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular? É justo, legítimo e legal que o povo (representado) se submeta à vontade (discricionária) de seus representantes?
A situação fica ainda mais grave, democraticamente, quando o poder do representante é substituído ou subtraído pela decisão política de um poder não-eleito. A cúpula do Judiciário tem causado e agravado o desequilíbrio institucional. De forma politicamente ilegítima, uma quase “juristocracia” tenta exercer hegemonia sobre o Legislativo e o Executivo (os poderes eleitos pelo povo). Trata-se de uma distorção (em essência, uma corrupção) do modelo constitucional, democrático e republicano. Aqueles que realmente atentam contra a “democracia” no Brasil vêm cometendo uma série de abusos ilegais. Exemplos hediondos: advogados sem acesso a inquéritos; crimes de opinião contrariando a liberdade de expressão assegurada pela Constituição; prisões políticas de quem é considerado “inimigo”; perfis derrubados nas redes sociais; censura econômica a veículos independentes da internet… Enfim, atentados flagrantes à liberdade… E sem liberdade, legalidade e legitimidade não existe democracia…
A Constituição de 1988 deveria ser a verdadeira Carta pela Democracia no Brasil. No texto, ela firma a base para isso. Em seu primeiro artigo, parágrafo único, está escrito: “Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de seus representantes eleitos ou diretamente”. Na teoria, justo e perfeito. Na prática, não é bem assim… O povo é sempre travado em seu poder de exercício direto. Praticamente em nenhuma ocasião o tal povo foi consultado sobre as mudanças que a Carta de 88 sofreu. Acontece que, de uns tempos para cá, interligado nas redes sociais da internet e presente, algumas vezes, nas ruas, o povo tem cobrado a fatura: quer de volta a soberania usurpada pela oligarquia, pela cleptocracia ou pela juristocracia. O desafio do povo brasileiro é ser soberano, de verdade.
O Establishment sabe dessa demanda. Por isso, aqueles que sempre se acharam os “donos do poder” (royalties para Raymundo Faoro) nunca estiveram tão tensos, preocupados e reacionários, inclusive quando usam e abusam de narrativas pseudo democráticas, em discursos políticos cínicos e “cartinhas” repletas de conceitos equivocados, com ideias fora da realidade brasileira. O esclerosado Sistema Oligárquico-Feudal tupiniquim — que se sustenta no falso jogo de extremos ideológicos — teme o avanço inevitável do movimento popular que reúne o que se pode chamar de “Centro Conservador Evolucionista”. Essa turma é que fará o mais importante 7 de setembro da história, celebrando a liberdade nos 200 anos da “Independência”. Enfim, o povo mostra que, por que e como pode ser soberano.
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