Brasil vai na contramão do que o resto do mundo pratica em Ensino Médio, diz ex-diretora do Banco Mundial
Em entrevista ao site da Jovem Pan, Cláudia Costin defendeu a obrigatoriedade do inglês e lamentou a existência de ‘pressões corporativistas por carga horária’ acima de um ‘projeto educacional que funcione’
Durante o último ano do governo Michel Temer, em 2017, foi sancionado o Projeto de Lei do Novo Ensino Médio. De modo geral, a iniciativa montou itinerários formativos que os estudantes podem escolher de acordo com seu perfil e interesse. Em vigor deste o início de 2022, o Novo Ensino Médio está vivendo uma nova reformulação promovida pelo atual Ministério da Educação, chefiada por Camilo Santana (PT). Para a ex-diretora global de Educação do Banco Mundial professora Cláudia Costin, uma reformulação tão profunda não é necessária. Para ela, um “freio de arrumação” já seria suficiente, dada a dificuldade de implantação das mudanças. “Com a pandemia e uma falta de coordenação nacional para uma implementação que não é simples, ficaram alguns desafios.” Costin, que atualmente é presidente do Instituto Singularidades, ainda afirma, em entrevista ao site da Jovem Pan, que toda esta profunda reformulação pode estar cedendo a “pressões corporativistas por carga horária, e não por um projeto educacional que funcione”. Para ela, o Brasil precisa formar alunos com um ensino que “põe a mão na massa”, como já é feito nos sistemas educacionais mais desenvolvidos internacionalmente. Além disso, a professora também defende que o aluno do Ensino Médio possa escolher se aprofundar naquilo que mais se identifica. Cláudia Costin ainda afirma que o ensino de inglês é fundamental para conectar os estudantes com o restante do mundo, já que o idioma é o mais usado no mundo, e que o ensino EAD é necessário para resolver alguns desafios geográficos nacionais.
Cinco anos após discussão sobre reformulação do Ensino Médio, uma nova mudança nesta fase da educação básica é realmente necessária? Olha, a rigor havia, sim, a necessidade de dar um freio de arrumação, porque com a pandemia e uma falta de coordenação nacional para uma implementação que não é simples, ficaram alguns desafios. A minha questão é outra: será que era necessário fazer um processo de reforma tão centralizador e radical em relação a algo que ainda estava sendo testado. A meu ver, o freio de arrumação era necessário porque alguns Estados acabaram ficando com 28 itinerários formativos, como o Rio Grande do Sul, o que do ponto de vista logístico não funciona muito bem. Enquanto outros Estados ficaram com quatro, por exemplo. Então, era necessário dar o freio de arrumação, mas não precisava ser um Projeto de Lei nem outras várias coisas. A ideia de fazer um Projeto de Lei é fazer uma coisa tão centralizadora, firmando apenas dois itinerários. Eu acho que empobrece a iniciativa. Por isso, espero que voltem atrás. Além disso, vou ser muito franca com quem vai nos ler: houve pressões corporativistas por carga horária, e não por um projeto educacional que funcione. Estão ampliando a formação geral básica para um número de horas que inviabiliza o ensino técnico e profissionalizante. Com isso, perdemos uma chance de dar um freio de arrumação que funcionasse, que retocasse algumas coisas, para ceder a pressões que não tem a ver com a melhoria da qualidade da educação; e pior, que vão contrários ao que o resto do mundo pratica em Ensino Médio.
Como tornar o Ensino Médio, e o estudo de maneira geral, mais atraente ao estudante? Acho importante a gente firmar a narrativ: não é que estão saindo em grandes números, teve um impacto na época da pandemia, porque muitos alunos saíram do Ensino Médio foram para trabalhos precarizados, e eles tiveram dificuldade de se reengajar. Mas, na verdade, nós temos um aumento consistente no número de jovens que, até os 19 anos, concluíram o Ensino Médio. Porém, estes jovens estão tendo um tipo de Ensino Médio ainda muito distante do que possa atrair a nova geração. A formação é desinteressante, não por falta de disciplinas na formação básica, mas por ter um processo de ensino ainda muito centrado em exposição de conteúdos que o jovem decora para acertar numa prova, e há muito menos mão na massa como praticam hoje os países que têm bons sistemas educacionais. O que nós temos é um ensino que tinha qualidade muito fraca. Bom lembrar que, em 2019 — ano que precede a pandemia —, nós já estávamos com desafios enormes no Ensino Médio: quatro horas de aula com 13 matérias espremidas nesse tempo. A maioria dos países de mesmo nível de desenvolvimento tinham de sete a nove horas de aula e, no máximo, oito disciplinas de formação básica, e depois áreas de aperfeiçoamento. Nós estamos voltando ao modelo antigo. No índice que mede a qualidade do Ensino Médio nas escolas públicas, por exemplo, em 2019 recebemos não mais do que 3,9, ou seja, a gente estava com nota vermelha, para usar uma linguagem da minha época.
Sobre língua estrangeira, há rumores de o inglês deixar de ser obrigatório. Mesmo esta formação sendo bastante fraca, o ensino do inglês é importante? Não tenho a menor dúvida! O inglês, como a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) estabelece, é a língua franca, língua de comunicação com o mundo. Eu adoraria que fosse francês, porque acho uma língua muito bonita, mas não é. Nós queremos que esses jovens, se assim o desejarem, possam ir para universidade. Ora, as universidades avançaram na internacionalização no período recente, e nós vamos colocar os nossos estudantes sem chances de se comunicar com o resto do mundo? Veja bem: se algum jovem não estudou espanhol durante seus anos de escolaridade e quiser aprender depois que termina o Ensino Médio, ele consegue com um ano aprender espanhol suficiente para ler textos e se comunicar com pessoas de outros países. Agora, se esse jovem não tiver inglês desde o fundamental II, de preferência desde o fundamental I, até o final do Ensino Médio, ele não chegará ao básico de inglês, pois não consegue adquirir esse conhecimento. Nós estamos aumentando as desigualdades educacionais se tirarmos a obrigatoriedade do inglês. A escola particular está partindo cada vez mais para um modelo bilíngue, e o que vai acontecer? Esses jovens de classe média e alta vão conseguir se comunicar com o resto do mundo, e nós estamos privando os alunos de escolas públicas de ter a mesma chance. Se quisermos fazer uma ação em prol da nossa integração com a América Latina, acho que seria mais inteligente e certo colocar o espanhol como opcional, ou seja, as redes escolhem se, além do inglês, querem ou não o espanhol.
E a diminuição do ensino a distância? O que acha? Na reforma eles querem diminuir a educação à distância, esquecendo que nós vivemos em um país onde há diferenças geográfica que impactam enormemente a aprendizagem. Rondônia, por exemplo, tem muita dificuldade de levar professores de inglês, de física, ou química para algumas localidades. O Estado criou, como o Amazonas já tinha feito, um centro de mídia, a partir do qual os professores da própria rede irradiam as aulas por satélite para as unidades escolares que estão em localidades mais distantes, onde existem unidades escolares que demoram três dias de para chegar. O Projeto de Lei impõe uma limitação enorme ao EAD, em uma idade em que o estudante está mais maduro. Eu acho que seria muito importante que se olhasse com mais flexibilidade para isso, porque educação à distância não significa necessariamente precarização do processo de ensino. Lembrando que, por exemplo, o Uruguai, um dos países com maior inclusão digital, tem aulas de inglês transmitidas dos Estados Unidos para os alunos, isso funciona muito bem no Ensino Médio.
Com toda essa mudança, o Enem ainda não tem um formato consolidado. O que acha disso? Acredito que foi inteligente fazer um Enem de transição, porque essa implementação do novo Ensino Médio teve muitos desafios. Daí eu aproveito esta pergunta para questionar: por que não pensar que as mudanças no Ensino Médio, que está sendo implementado, também possa ter um tempo de transição? É importante para gente ver se funcionou bem ou se algumas inconsistências foram superadas ou não.
Todas essas mudanças trazem angústias para os estudantes. Como contornar a situação? Olha, em primeiro lugar, é muito bom que os estudantes estejam se interessando pelo que está acontecendo, porque, afinal de contas, vai impactar a vida e o futuro deles e é importante que a voz dos estudantes seja ouvida. Em uma pesquisa do Datafolha feita em dezembro de 2022 com estudantes do Ensino Médio mostrou-se que 92% dos estudantes acham importante ter uma área de aprofundamento. É preciso que os estudantes possam escolher suas áreas de aprofundamento de acordo com seus interesses, existem estudantes que gostam muito de humanidade, por exemplo, e existem estudantes que têm uma preferência maior por exatas — química, física e biologia. Por que eles não podem se aprofundar e tem que ser submetidos àquele velho Ensino Médio que você aprendia um verniz de cada área? Outra coisa que é importante destacar é que 86% dos estudantes almejam fazer ensino técnico e profissionalizante, de acordo com outra pesquisa. Não é para substituir a universidade, pois é comum uma etapa diferente na sua formação para um futuro que está muito incerto. O mundo do trabalho está em constante mutação. Agora, com esse projeto de lei que foi apresentado, praticamente se inviabiliza o ensino técnico profissionalizante, a não ser que a escola seja em tempo integral. E hoje, nós vivemos uma crise de insuficiência de recursos, imaginar que os Estados muito rapidamente vão caminhar para Ensino Médio em tempo integral não condiz com a realidade do nosso país.
Comentários
Conteúdo para assinantes. Assine JP Premium.