“A colaboração é um acordo de rendição”, diz advogado da Odebrecht
O advogado Theodomiro Dias Neto, que coordenou todo o longo e exaustivo processo de negociação da Odebrecht com a força-tarefa da Operação Lava Jato, classifica a colaboração premiada como “um acordo de rendição”.
Durante dez meses, de fevereiro a dezembro de 2016, Theo Dias, como é conhecido, experimentou etapas de muita tensão nas negociações que culminaram na assinatura do maior pacto de delação premiada da Lava Jato – envolvendo 77 executivos e ex-funcionários da empreiteira.
Em entrevista ao Estado, ele diz que a operação revelou a “relação promíscua, parasitária, entre atores públicos e privados”, mas o saldo positivo pode ser “um novo ambiente de negócios no Brasil”.
Como a Lava Jato influi no Direito Penal?
Vivemos um momento de ambiguidade no Brasil. Eu me sinto pessoalmente dessa forma. De um lado, um profundo desânimo, um profundo ceticismo, pessimismo, nós sentimos ao constatar a dimensão do nível de penetração da corrupção no Brasil. Todos sabíamos que o Brasil é um país com problema sistêmico de corrupção, mas talvez nenhum de nós tivéssemos uma dimensão tão clara do nível que estava. Isso causa perplexidade, preocupação, entristecimento, desaponto com determinados agentes públicos que nós acreditávamos, nos quais votamos. Essa é uma metade do copo. A outra metade é uma leitura mais otimista, de que a Lava Jato é produto de um aperfeiçoamento institucional. A Lava Jato não é e não deve ser sinônimo de Sérgio Moro. Qual será o saldo positivo da Lava Jato se pensarmos daqui a dez anos? Quero crer que possa ser um novo ambiente de negócios no Brasil, uma nova forma de relacionamento entre o setor público e o privado.E isso se faz por meio de reformas no campo do Direito Penal e também por reformas fora do Direito Penal.
Quais?
As reformas do Direito Penal são aquelas necessárias para regulamentar melhor o sistema com o público, o relacionamento entre o setor público e o privado. É necessário criar mecanismos para aperfeiçoar o sistema de compras públicas, de contratações públicas.
Qual a sua avaliação sobre as Dez Medidas, o pacote levado ao Congresso pelo Ministério Público Federal?
Tenho profundo respeito pelos procuradores da República e pelos policiais federais que integram a força-tarefa. São profissionais jovens, entusiasmados, que trabalham 16 horas por dia na investigação. Isso, por si só, já é algo discrepante na média do serviço público brasileiro. Um nível de dedicação que não é comum. Tenho uma série de divergências, obviamente, de natureza jurídica no conteúdo, na forma como denúncias são apresentadas, na excessiva duração de prisões sem pena. Acho que, em alguns casos, desnecessariamente longas. Entendo que essas Dez Medidas – concordo com algumas delas – estão voltadas a facilitar, a assegurar maior transparência na relação do poder público. Eu acho que é possível, sim, pensar em reformas legislativas no sistema recursal para que ele seja mais ágil, sem que isso signifique redução de garantias.
Há uma cruzada de procuradores e juízes contra o garantismo no Brasil?
Não podemos criar uma contraposição entre a eficiência da aplicação da lei penal e o sistema de garantias processuais necessárias para que o processo seja justo. As garantias penais fazem parte da realidade em qualquer país que se pretenda civilizado. Você mede a força do estado de direito pelas garantias processuais penais. No caso da Lava Jato estamos vendo que essa operação está acontecendo dentro do atual arcabouço jurídico do País. Independentemente de maiores modificações legais, a operação está acontecendo com as garantias que estão aí, previstas pela Constituição, que podem até em alguns casos estar sendo questionadas pela defesa, mas o sistema está aí para avaliar se elas estão sendo cumpridas. O que está fazendo a diferença na Operação Lava Jato é a qualidade da investigação criminal. Isso vem permitindo que a aplicação da lei penal seja eficiente. É fundamental que a eficiência do Direito Penal não seja uma eficiência a qualquer preço. A eficiência a qualquer preço é a Gestapo.
Há um ano, uma centena de juristas, advogados, assinaram manifesto classificando a Lava Jato como uma operação de uma “neoinquisição”…
Divirjo de muitas das interpretações jurídicas que vêm sendo dadas no âmbito da Operação Lava Jato. Por exemplo, no entendimento da extensão do crime de lavagem de dinheiro. Me parece excessivamente abrangente. Não é coerente com o conceito de crime de lavagem. A forma como o crime de lavagem vem sendo interpretado em muitas das denúncias e decisões não me parece adequada. Também entendo que em muitas das prisões houve uma abertura da interpretação, mais abrangente do que vinha ocorrendo, mas não acredito que seja um sistema inquisitivo e também não gosto de comparações com o regime militar, como alguns costumam fazer. Acho que, de fato, a situação no Brasil hoje, o grau, a dimensão da Operação Lava Jato tem levado juízes, inclusive de tradição liberal, como o ministro (do STF) Celso de Mello, a adotarem as posições mais rígidas com relação à questão da prisão processual, entendendo que os riscos para o processo, nesses casos, justificam uma exceção da prisão temporária.
Como foram as negociações até a delação da Odebrecht?
Não pretendo entrar na discussão do caso Odebrecht. Posso dizer, de forma genérica, que qualquer negociação de um acordo de delação premiada envolvendo pessoas ou empresa tem como primeiro grande desafio a criação de um ambiente de negociação. A complexidade desse processo pode ser maior ou menor dependendo do número de pessoas envolvidas, dependendo do tempo, do momento em que você está, dependendo do interesse do Ministério Público no acordo, dependendo da quantidade de informações que o Ministério Público tem ou não à disposição. A construção desse ambiente de negociação passa necessariamente pela construção de uma credibilidade, pela constatação de que você não está ali fazendo um jogo de cena, de que você realmente deseja o acordo, de que você está à disposição de revelar os fatos, está com disposição de virar uma página na sua vida. Esse é um primeiro grande desafio. Um acordo de colaboração premiada não é um acordo de pessoas, de partes em posições simétricas. Há uma relação de total assimetria de poder nessa relação. O acordo de colaboração premiada é um acordo de rendição, em que uma parte está se rendendo à outra. O que é importante, é fundamental e um desafio para você fazer um acordo é que no caso de uma empresa ninguém faz um acordo para morrer, você faz um acordo para sobreviver.
Qual foi o papel do Emílio Odebrecht no processo de delação?
O que eu posso dizer é que o Emílio Odebrecht tem sido a grande força propulsora de mudanças dentro da empresa. Ele é a pessoa que decidiu virar essa página e, portanto, foi o grande indutor de todo esse processo. Sem Emílio Odebrecht isso não teria acontecido.
A Lava Jato ficou marcada pelo grande número de delações premiadas. Há quem considere um exagero e que prisões ocorrem para forçar a colaboração…
Acredito no acordo de delação premiada. É um instrumento importante e deve estar à disposição do Estado como um instrumento para o combate e prevenção a ilícitos. Se consegue até evitar que outros ilícitos possam ocorrer. O risco é a excessiva dependência do Estado na delação transformar o sistema penal num sistema preguiçoso. A confissão que volta a ter aquele valor que tinha no período inquisitivo de rainha das provas. O Estado não pode estar dependendo das delações, mas eu não acho que é o que está acontecendo necessariamente.
A decisão do Supremo de autorizar a prisão em segunda instância teve influência?
Além dessa decisão, o que está influindo na Lava Jato é a celeridade das decisões. Eu discordo dessa decisão porque entendo que dentro da atual realidade penal não há uma interpretação possível que autorize a prisão após a decisão em segunda instância. Para que isso ocorra é necessário que haja uma mudança da lei.
O que a Lava Jato revelou? Caixa 2 ou propina?
Há de tudo. É uma discussão que seguirá. A Lava Jato trouxe exemplos de doações oficiais que eram atos de corrupção e há também doações não oficiais, no caso o caixa 2, que não necessariamente estão vinculados a uma contraprestação, ao chamado toma lá dá cá. Teremos um desafio dogmático importante para diferenciar com maior rigor técnico o crime de caixa 2 eleitoral e o crime de corrupção.
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