De risco, gravidez até 14 anos persiste no Brasil

  • Por Estadão Conteúdo
  • 08/01/2018 13h07
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Reprodução Apesar do alto risco da gravidez em meninas com menos de 15 anos, o Brasil não avançou na última década na redução desses casos

Dois meses depois de ter contado para sua mãe que estava grávida, Maria, de 14 anos, deu à luz um menino. O filho nasceu prematuro – ela não sabe ao certo o tempo de gestação. O medo da reação da família e o constrangimento com a gravidez fizeram com que ela só tivesse feito duas consultas de pré-natal e não soubesse que desenvolveu hipertensão e uma infecção urinária que levaram ao nascimento prematuro do bebê.

Maria faz parte da faixa etária considerada por especialistas como a de maior vulnerabilidade gestacional, para a mãe e o bebê Apesar do alto risco da gravidez em meninas com menos de 15 anos, o Brasil não avançou na última década na redução desses casos. Enquanto o País conseguiu reduzir o índice de bebês que nascem de mães entre 15 e 19 anos de 20,1% do total, em 2007, para 16,7%, em 2016, a mudança é lenta na faixa etária das mães mais jovens. Nesse mesmo período, a taxa de bebês nascidos no País filhos de meninas entre 10 e 14 anos oscilou de 0,94% para 0,85%, segundo dados do Ministério da Saúde.

Essas gestações demonstram uma série de falhas nos cuidados com essas jovens, como a falta de informação, educação, acesso a anticoncepcionais e proteção contra a violência sexual. Além dos riscos por fatores biológicos – já que muitas vezes o sistema reprodutor ainda não tem a maturidade completa -, especialistas apontam problemas ainda maiores nessa idade por questões sociais e comportamentais. Muitas jovens, como Maria (nome fictício, assim como os demais usados na reportagem, para preservar as adolescentes), não têm compreensão sobre cuidados na gravidez, nem mesmo o entendimento sobre como ela ocorre.

“Não sabia que dava para engravidar na minha idade. Minha menstruação veio a primeira vez um ano antes de eu engravidar e era sempre estranha, não vinha certinho todo mês, como a minha irmã falou que seria”, conta Maria. A irmã, três anos mais velha, foi quem suspeitou da gravidez quando nadavam juntas em um rio e percebeu a barriga “despontando”.

Maria fez um teste de farmácia e, apesar do resultado positivo, esperou mais algumas semanas até contar para a família por acreditar que poderia não estar grávida. “Não senti nada durante a gravidez, nenhuma dor ou mal-estar. Até que um dia meus pés incharam, me deu tontura e fiquei enjoada. Cheguei no hospital e não saí mais daqui”, disse ela, dois meses após o nascimento do filho e sem ter saído nenhum dia do lado dele na Maternidade Mãe Luzia, em Macapá, a única pública no Estado.

Acompanhamento

O Amapá é um dos Estados que têm maior proporção de bebês nascidos de mães com menos de 19 anos – um em cada quatro. Enquanto o País registra 0,88% das crianças nascidas de mães com menos de 15 anos, o Estado tem proporção de 1,37%. Os médicos da Mãe Luzia admitem não conseguir dar a atenção devida para todas as adolescentes.

“Toda gravidez até 17 anos deveria ter acompanhamento de pré-natal de alto risco, mas não conseguimos fazer isso com todas. Para dar conta, restringimos o alto risco para até 15 anos, mas ainda assim nem todas têm acesso”, explica o médico Carlos Filho, diretor da unidade.

Prematuro, o bebê de Maria passou dois meses na UTI neonatal, entubado e medicado. Dados do Ministério da Saúde mostram que a situação da adolescente e seu filho não é caso isolado no País.

O grupo das grávidas de 10 a 14 anos é o que tem a pior cobertura de pré-natal. Segundo especialistas, isso explica outros dados preocupantes da faixa etária. São 15,1 óbitos fetais a cada mil nascidos vivos – ante média de 10,9 no País. A taxa de bebês com baixo peso (até 2,5 quilos) é de 13,7%, ante 8,4% na média nacional.

“Sem ter um acompanhamento adequado na gravidez, elas podem desenvolver doenças específicas da gravidez que poderiam ser prevenidas ou controladas, como a síndrome hipertensiva, infecção urinária, hemorragias que levam à prematuridade”, diz Maria Albertina Rego, da Sociedade Brasileira de Pediatria.

Quando questionada sobre onde vai morar com o bebê ao sair do hospital, os olhos de Maria ficam marejados. Seu plano é de morar com o namorado e os sogros. Apesar de já ter cuidado dos irmãos mais novos, ela nunca havia segurado um recém-nascido no colo e diz ter medo de não saber dar ao filho o que ele precisar “Não sei quando ele vai querer mamar, trocar fralda. A mamãe está me falando o que tenho que fazer, mas só vou aprender com ele em casa”, conta.

Abandono

Joana engravidou aos 14 anos de um homem que conheceu em uma viagem, que fazia com a família, de barco entre o Pará e o Amapá O homem tinha 32 anos e mudou de cidade quando ela contou que estava grávida. “Um homem crescido fugiu da responsabilidade e deixou a criança para uma menina criar sozinha. Isso não é certo, ele nem quis registrar a bebê, nunca deu nada pra ela”, critica a mãe de Joana, uma agricultora aposentada de 62 anos, que teve 12 filhos – o primeiro aos 13 anos.

Avó, filha e neta moram em uma palafita na periferia de Macapá e sobrevivem só com a aposentadoria de um salário mínimo. A bebê de Joana completou 7 meses sem ter conhecido o pai. “Quero dar o melhor pra minha filha, vou conversar muito quando ela for mais velha para que a vida dela seja diferente da minha”, diz Joana. Ela parou de frequentar a escola no 6.º mês de gravidez e ainda não retomou os estudos. “Ainda estou amamentando, e a escola fica longe”, acrescenta ela, que ainda pretende voltar à sala de aula.

Para Anna Cunha, do Fundo de População das Nações Unidas, a responsabilidade pela gravidez e os cuidados com o bebê ainda recaem desproporcionalmente sobre a mãe. “Isso precisa deixar de ser visto como escolha ou responsabilidade individual. É dos sistemas educacionais e de saúde, da sociedade. Precisamos dar condições para que voltem a estudar, trabalhar, ter sonhos novamente.” E a falta de perspectiva escolar ou profissional também leva à gravidez precoce. “Sem enxergar possibilidade futura, muitas vezes a maternidade é vista como a única identidade socialmente valorizada para uma mulher.”

É o caso de Manuela, que aos 13 anos abandonou a escola, fugiu de casa e foi morar com o namorado, de 18, na zona rural de Macapá. Como ele trabalha o dia todo na horta, ela passava a maior parte do tempo sozinha. “A casa é pequenininha. Eu arrumava tudo, fazia almoço e não tinha mais nada pra fazer. Assistia novela o dia todo, mas comecei a sentir falta de companhia e pensei que seria bom ter um bebezinho.”

Ela engravidou alguns meses depois e diz ter levado um susto quando descobriu que teria gêmeas. Como morava longe de unidades de saúde, Manuela só fez duas consultas de pré-natal. Segundo os médicos, com o corpo ainda em desenvolvimento e o quadro agravado por uma infecção urinária, as meninas nasceram seis semanas antes do previsto. As duas estão há mais de um mês na UTI neonatal.

Enquanto espera as filhas terem alta do hospital, Manuela planeja como será sua vida com as garotas. “Antes eu pensava em ser advogada ou médica. Agora só posso pensar no melhor para elas. Vou brincar e dar muito carinhos para as duas.”

Novo hospital

Questionado pela reportagem sobre os dados, o Ministério da Saúde destacou a queda geral de gestações entre adolescentes, dos 10 aos 19 anos, mas não se manifestou sobre a faixa etária específica até 14 anos. A pasta atribui a redução à expansão dos programas Saúde da Família e Saúde na Escola, por terem aproximado os jovens dos profissionais de saúde, e a mais acesso a métodos contraceptivos e à informação.

Também afirmou que, para aumentar a cobertura de cuidado pré-natal às adolescentes, trabalha com a busca ativa de gestantes “para que sejam acolhidas e recebam cuidados diferenciados, de acordo com as suas necessidades e demandas de saúde”, diz a nota.

O governo do Amapá informou que tem um programa de educação sexual e planejamento familiar nas escolas estaduais e disse oferecer preservativos nas unidades. Também informou que a Secretaria Municipal de Saúde está construindo um “plano de ação emergencial” para desafogar o atendimento na maternidade. Não informou, porém, detalhes desse plano. O Estado disse que está em fase final de construção a Maternidade de Parto de Risco Habitual, que deve absorver até 40% da demanda da Maternidade Mãe Luzia, a única pública do Estado. A previsão é que a obra seja entregue ainda no início deste ano.

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