Déficit educacional pós-pandemia pode ser recuperado ‘em até três anos’, avalia especialista

Prazo depende de políticas públicas que auxiliem os estudantes a recuperar o tempo longe das salas de aula; em São Paulo, a rede pública de ensino ficou 22 meses sem funcionar de maneira contínua e 100% presencial

  • Por Eduardo Morgado
  • 29/05/2022 13h00 - Atualizado em 29/05/2022 16h01
Luis Fortes/MEC - 11/08/2021 Menina em escola Início do ano na capital paulista é marcado pelo aumento das mensalidades escolares

Entre as diversas áreas que foram afetadas pela pandemia da Covid-19 – tais como a econômica e da saúde -, a educacional foi afetada de maneira silenciosa. Alunos das mais diferentes idades, graus de ensino e diferentes localidades foram impedidos de acompanhar as atividades letivas de maneira 100% presencial por pouco mais de 22 meses. Em São Paulo, o ex-governador João Doria (PSDB) decretou a suspensão das aulas presenciais no dia 16 de março de 2020. Alunos e professores da rede pública puderam se reencontrar apenas em 2 de fevereiro de 2022. A Jovem Pan ouviu especialistas para tentar mensurar o tamanho do impacto educacional deste hiato de quase dois anos no calendário letivo, quanto tempo demorará para que os discentes cessem esta defasagem e quais políticas públicas estão sendo desenvolvidas para auxiliar os jovens que encontram dificuldades no retorno ao ensino tradicional em sala de aula.

Um dos primeiros problemas causados pela pausa no ensino presencial apontados por Thomaz da Silva, doutor em avaliação educacional pela Universidade Federal do Ceará e pela Universidade de Copenhagen, na Dinamarca, é a disparidade entre o ensino público e o ensino privado, que tornou-se notável durante o período de distanciamento social na pandemia. O especialista argumenta que a desigualdade social no Brasil “deságua” em uma desigualdade educacional. “De um lado tínhamos as escolas privadas com recursos financeiros bem consolidados, alunos com uma condição aquisitiva melhor, que conseguiram acompanhar com algum dispositivo eletrônico que tivesse em sua residência; do outro, temos a escola pública, com alunos que têm baixo poder aquisitivo, alta vulnerabilidade e que ficaram muito distantes da escola”, disse à reportagem.

Apesar do esforço coletivo, o ensino público focou em manter o aluno vinculado à escola. Esse cenário leva ao segundo e principal problema enfrentado pelos docentes: passado o tempo de reclusão da pandemia, nota-se um atraso cognitivo em parte dos alunos no retorno à sala de aula. “Nosso currículo não foi adaptado para ser trabalhado em tempos de pandemia. O Brasil tem uma base curricular que vale para todos os Estados e entes federados. Então, temos uma estrutura onde o aluno chega no quinto ano para aprender conteúdos e habilidades referentes ao quinto ano, mas com uma defasagem desde o terceiro ano. Temos crianças que estão no quinto ano do ensino fundamental com dificuldades de ler e escrever, pois deveriam ter sido alfabetizadas corretamente há anos”, alerta o acadêmico, que ressalta a importância de políticas públicas que envolvam ciclos de alfabetização para que este problema seja superado.

Marlene Ferreira Chagas, professora da escola Escola Professor Jairo Grossi, da rede privada de ensino do ensino fundamental na cidade de Caratinga, em Minas Gerais, aulas com hora marcada para serem acompanhadas em aparelhos virtuais não garantiam o comparecimento dos alunos. “A infrequência nas aulas foi algo recorrente, nunca desejamos tanto o chão da sala de aula. Tivemos uma grande parte de estudantes que não tinham acesso às aulas síncronas e que, por isso, ficaram em desvantagens com relação à outra pequena parte. Isso, sem dúvida, retrata o nosso país tão desigual, onde a educação está longe de ser prioridade”, argumenta a educadora.

A professora conta que, após o período de reclusão causado pela pandemia, percebeu um aumento na “euforia, ansiedade e indisciplina” dos pequenos alunos, além do imediatismo entre aqueles que “não querem ler para interpretar nem como forma de entretenimento”. “A pandemia só agravou um problema sério que já existia, que é o descaso com a educação. As políticas públicas precisam ser revistas, assim como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) ser reformulado”, disse. Segundo a pedagoga, o comprometimento cognitivo no retorno às aulas é fato e será preciso que o educador encontre estratégias de facilitar a aprendizagem do jovem. “A pandemia veio nos ensinar, enquanto professores, que temos inúmeras alternativas para alcançar nossos alunos. Muitas estratégias podem ser utilizadas. Nunca aprendi tanto em se tratando de tecnologia. Cabe ao educador ter um olhar observador e crítico em sua sala de aula, tendo como objeto de estudo o aluno e enquanto mediador, ser capaz de encontrar estratégias, que deem ao aluno o direito de aprender”, explica a docente.

Então, como fazer com que o aluno aprenda o que ele deveria ter aprendido no terceiro e quarto ano e também aprenda o que deve ao longo do quinto ano? Thomaz diz que é necessário aumentar a duração de instrução destes jovens, ou seja, o tempo que os alunos ficam expostos à sala de aula, a conteúdos e às atividades pedagógicas que darão ao indivíduo a oportunidade de aprender o que ele deveria ter aprendido. “Se a gente pensar que um aluno hoje de quinto ano é um não leitor, um aluno não alfabetizado, esse aluno no sexto ano vai ter problema de aprendizagem e no sétimo ano, idem. O impacto é direto tanto na vida cognitiva e social, quanto na vida profissional, já que daqui seis ou sete anos ele irá prestar um vestibular, por exemplo”, argumenta.

Um documento publicado em agosto de 2021 pela Secretaria de Política Econômica (SPE) do Ministério da Economia ajuda a explicar o tamanho do impacto. Segundo o boletim, o efeito do déficit educacional e na aprendizagem dos alunos – entre 5 e 20 anos de idade – durante a pandemia causará consequências na produtividade de trabalho, o que afetará o Produto Interno Bruto (PIB), e poderá acentuar a desigualdade social. “Há duas formas extremas de lidar com o problema. A primeira seria deixar o hiato educacional cobrar seu preço no estoque de capital humano brasileiro, de modo que jovens entrem no mercado de trabalho com a mesma idade que entrariam sem a pandemia, porém com uma quantidade menor de anos de educação formal”, diz um trecho do documento.

A segunda alternativa apresentada pelo órgão seria repor esse tempo fora das escolas com anos adicionais de estudo, porém, o efeito de postergar em anos a entrada de jovens no mercado de trabalho seria, segundo a SPE, “dramática”, pois encolheria a geração de riqueza do país. A pasta calcula que os efeitos desse atraso educacional somente deixará de ser sentido em 2038, ou seja, quando toda essa parcela da população estudantil impactada pela pandemia estiver totalmente no mercado de trabalho. “Escolas fechadas hoje causam um país mais pobre amanhã e esse amanhã deve perdurar por quase duas décadas”, conclui a secretaria.

Thomaz afirma que uma das políticas públicas de referência no trabalho de recomposição de aprendizagem é o Brasil na Escola – iniciativa do Ministério da Educação (MEC) em parceria com o Banco Mundial; o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef); o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE); o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), entre outros. O programa busca planejar e implementar uma governança conjunta entre os governo federal, estadual e municipal, de modo a distribuir um material estruturado para a recuperação disciplinar dos alunos, avaliações formativas e a formação de professores. “Essa é um programa baseado numa política indiana, onde já há evidências científicas muito importantes do seu impacto chamado de ‘Teaching At The Right Level‘”, explica o especialista.

Além da iniciativa, recentemente, o MEC lançou um plano de Recuperação das Aprendizagens na Educação Básica. Através do Decreto 11.079/22, o governo visa evitar o abandono escolar no pós-pandemia e auxiliar para que as metas e estratégias estabelecidas no Plano Nacional de Educação sejam cumpridas. Questionado sobre o tempo de recuperação dos jovens afetados pela ausência escolar durante a pandemia, Thomaz manteve uma visão otimista caso as políticas desenvolvidas pelo governo sejam aplicadas de maneira satisfatória. O especialista afirma que, “com políticas públicas focadas nesse processo de recomposição”, será possível recuperar o déficit educacional brasileiro “em dois ou três anos”.

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