JP Descomplica: Por que minha cidade alaga quando chove forte? Entenda
Nas últimas semanas, a região Sudeste registrou números alarmantes por conta da chuva. Só em São Paulo, o Inmet afirmou ter chovido quase a metade do esperado para o mês, o maior temporal em 37 anos.
As chuvas deixaram um rastro de destruição, travaram as principais avenidas da cidade, o Rio Tietê transbordou e o Rio Pinheiros atingiu o maior nível de água desde 1967.
Maior entreposto da América Latina, o Ceagesp, ficou fechado. O comércio paulista teve um prejuízo de R$ 110 milhões. Pelo menos 4 pessoas morreram, 516 ficaram desalojadas e 142 desabrigadas.
Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito Santos também não ficaram atrás. E as questões que ficam são as seguinte: por que as cidades alagam? A culpa é mesmo das chuvas? Falta investimento financeiro ou planejamento?
1. A culpa não é apenas dos fenômenos naturais
De acordo com o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), o número de precipitações com mais de 80 mm em 24h aumentou quase 55% neste século. Apesar das chuvas estarem realmente mais frequentes, as enchentes e os alagamentos não ocorrem por causa dos fenômenos naturais, mas sim pela falta de planejamento urbano.
Embora as capitais — RJ, SP, ES e MG — sejam bem diferentes entre si, elas têm um ponto em comum: foram construídas em cima de rios. Muitos deles foram canalizados e substituídos por asfalto, um material que é impermeável e não absorve a água da chuva.
Para o professor e coordenador da equipe de pesquisadores do Instituto das Cidades da Unifesp Zysman Neiman, um dos grandes problemas é que as cidades foram construídas para facilitar o uso de automóveis. “Os asfaltos e outros calçamentos acabaram tornando o solo da cidade impermeável, e a água que não escoa para o solo corre para o asfalto, indo para os córregos e rios da cidade”, explica.
O professor destaca, ainda, outros pontos negativos no planejamento das capitais brasileiras: a construção de moradias em encostas e margens de rios — muitas vezes por falta de opção das pessoas — e a própria canalização — que significa cobrir o leito ou a calha do rio.
2. Falta mais planejamento do que investimento
A professora do Departamento de Geografia da Unesp Maria Encarnação Beltrão explica que há uma tendência histórica no caso do Brasil de “canalizar e retificar os rios”, ou seja, de mudar “o curso natural milenar deles”.
“Ao colocar o rio dentro de um canal, como aconteceu com o Rio Pinheiros e com o Rio Tietê (ambos em SP), estamos de um lado aprisionando as águas, e de outro dando mais velocidade a elas, o que faz com que o deslocamento seja feito com maior intensidade, gerando desmoronamento e desbarrancamento”, afirma.
De acordo com ela, outro ponto de natureza estrutural é o aumento da mancha urbana da região metropolitana que, por ser extensa e com grande contingente populacional, gera um grau de impermeabilização do solo muito elevado.
A geógrafa e diretora da Oscip Associação Águas Claras do Rio Pinheiros Stela Goldenstein usa a cidade de São Paulo para exemplificar esta questão. “Na mesma época que se fez as grandes obras de canalização e retificação do Rio Pinheiros, se fez também as obras de canalização de cada um dos seus afluentes. As margens foram ocupadas, a capital crescendo no entorno, e a bacia hidrográfica passou a ser uma grande cidade.”
Stela levanta, ainda, outro ponto importante: a falta de planejamento sanitário. “Assim como tantas outras cidades brasileiras, SP foi crescendo sem infraestrutura sanitária, sem coleta de esgotos e controle da poluição”, diz.
3. Saneamento básico é essencial
O problema das chuvas está ligado diretamente ao saneamento básico. Apesar de muitos pensarem que o tema trata apenas do acesso à água limpa e esgoto tratado, a questão do descarte regular do lixo também está inclusa.
De acordo com o professor Zysman Neiman, o descarte irregular pode agravar o problema dos alagamentos. “Se os córregos estão canalizados, qualquer obstáculo que possa impedir o livre correr dessas águas pode piorar o problema. Os bueiros e bocas de lobo tem uma entrada muito estreita e o próprio canal do rio canalizado também é estreito.”
“Se os sacos de lixo vão para essas bocas de lobo, entopem e agravam ainda mais o problema. É necessário primeiro um trabalho de educação ambiental para não descartar resíduos de maneira inadequada, mas principalmente o poder público ter um sistema de coleta efetivo de lixo — impedindo que esses sacos de lixo parem nos canais fluviais.”
4. Por que o asfalto impermeável piora a situação?
Outro problema que pode piorar a situação é a drenagem da água. O asfalto utilizado nas ruas e avenidas é impermeável e isso impossibilita que o solo absorva a água da chuva, fazendo com que ela escoe para córregos e rios.
Zysman Neiman explica que traços do aumento da urbanização, como alto índice de uso de automóveis, reforça o uso do pavimento.
“O automóvel como principal modal faz com que as avenidas sejam adaptadas a isso, asfaltos e outros calçamentos que acabam por tornar o solo na cidade impermeável. Ou seja, ele não permite que a água possa escoar para o solo e então corre pelo asfalto.”
5. Qual o problema em canalizar os rios?
Já a solução prática de fechar ou canalizar um rio também não é considerada ideal. Como já citado pela professora Maria Encarnação Beltrão, outro problema é justamente a canalização.
De acordo com o Neiman, ela consiste em “espremer” o rio dentro de um duto “que a natureza não está habituada”.
“Os rios normalmente precisam de uma margem muito grande de escoamento. As margens dos córregos tem muita água acumulada debaixo que você não enxerga. Ao restringir isso colocando concreto ou outro material impermeável, você desconecta a chegada dessas águas pelo subsolo. Ela entra por cima da parte impermeável, aumenta a velocidade do rio e ele acaba transbordando”, complementa.
E isso afeta também a questão da habitação. De acordo com a professora Maria Encarnação, as pessoas vão tendo opções de moradias cada vez mais fora do centro.
“Algumas áreas de periferias estão inadequadas para as construções, como encostas de morros e proximidades de margem de córregos e lagos. Esse é um modelo equivocado de urbanização implantado ao longo do século 20 em todas as cidades do mundo.”
Isso, de acordo com o especialista em administração pública Álvaro Martim, acontece por um motivo. “O que nós estamos vendo em algumas regiões de grandes enchentes são setores que passaram por especulações imobiliárias intensas. Então existe também a dinâmica imobiliária e de ocupação do solo.”
6. A solução é difícil, mas não impossível
“Se há vontade de resolver um problema como esse, não devemos atacar as consequências, mas sim as causas”, diz Zysman Neiman.
Segundo o professor, algumas medidas necessárias para solucionar a questão no meio urbano consistem em promover a retirada das grandes avenidas de cima dos córregos e permitir que eles tenham margem maior no período de cheias, recuperar a mata no entorno, realizar o descarte adequado do lixo e substituir o asfalto impermeável pelo permeável.
O investimento em uma educação ambiental para que a sociedade descarte o lixo da maneira correta é fundamental pois estrutura e fortifica as demais medidas.
Álvaro Guedes, especialista em administração pública, conclui que o problema não ocorre devido a maior elevação no índice pluviométrico — mas por questões estruturais que se alicerçaram há 20, 30 ou até mesmo 40 anos.
7. É um problema da União, Estados e municípios
De acordo com Álvaro Guedes, é preciso ter em mente que a questão do saneamento envolve não só a água presente na superfície, mas também no subsolo, que são bens pertencentes à União. Entretanto, a exploração dos serviços atualmente tem sido desenvolvida majoritariamente pelos municípios do país.
“Acontece que o ciclo do saneamento é caro pois envolve desde a captação da água até seu retorno à natureza. Devido ao alto custo, poucos estados e cidades no Brasil tiveram êxito no serviço”, esclarece.
Guedes afirma ainda que o problema relacionado ao saneamento apenas pode ser completamente resolvido com a cooperação de todas as esferas públicas e a longo prazo, haja vista sua complexidade e caráter estrutural.
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