‘Nada mais justo’, diz vítima sobre prisão de João de Deus; leia o relato
O Minisitério Público de Goiás (MP-GO) pediu nesta quarta-feira (12) a prisão de João Teixeira de Faria, o líder espiritual João de Deus, depois que cerca de 200 mulheres procuraram o órgão para denunciar abusos sexuais cometidos pelo médium. Maria (nome fictício) é uma dessas vítimas.
Ela prestará depoimento ao Ministério Público de São Paulo nesta quinta-feira (13), onze anos depois de ter sido abusada por João de Deus.
Maria narrou sua história a Jovem Pan. Acompanhe:
Há onze anos, meu tio foi diagnosticado com esclerose lateral amiotrófica, um prognóstico muito ruim, no qual o paciente vai a óbito em três anos. Minha família ficou devastada. Procuramos todos os tratamentos convencionais possíveis. Quando não havia mais esperança, meu tio se apegou à fé e ao João de Deus e começou o tratamento com ele.
Depois de três semanas que ele estava em Abadiânia (GO), minha mãe e eu decidimos ficar uma semana na cidade para fazer companhia a ele e apoiá-lo. Eu tinha acabado de completar 18 anos e estava de férias da faculdade de fisioterapia.
Chegamos a Abadiânia na segunda-feira, mas não sabíamos que a Casa [Casa Dom Inácio de Loyola, onde João de Deus atende os fiéis] só abre às quartas, quintas e sextas-feiras.
Então esperamos mais dois dias até que, na quarta-feira, eu peguei a fila dos fieis que estão indo pela primeira vez à Casa. No final dessa fila, encontrei o João de Deus sentado numa espécie de trono. Ele não me deu muita atenção. Disse que estava lá por causa do meu tio e ele me deu um passe.
Esse ritual se repetiu no mesmo dia, à tarde. Nessa ocasião, ele me mandou esperar na sala do ‘pós-operatório’, que também é pública, onde ficam as pessoas que fizeram a cirurgia espiritual.
Voltei para a pousada depois das 18h muito cansada. Estava esgotada porque, energeticamente, o lugar te suga muito.
O mesmo processo se repetiu no dia seguinte.
Na sexta-feira, eu peguei a mesma fila que nos dias anteriores e percebi que ele me olhou, me fitou de um jeito diferente, que me perturbou. Ele estava com uma cara fechada, de quem estava bravo. Eu passei nele e ele disse que eu precisaria procurar o João de Deus e explicar que a entidade mandou.
Eu estava com medo. Mas não estava com medo do homem, estava com medo de ele receber um espírito enquanto eu estava na sala com ele. Pedi que minha mãe entrasse comigo. Havia umas cinco pessoas nessa segunda fila, o que achei estranho, já que as outras filas eram quilométricas. Entre essas pessoas, tinham mulheres de idade e até um homem.
Quando chegou a minha vez, eu bati na porta e um funcionário disse que a minha mãe não poderia ir comigo. Ela falou para eu ir, que o João de Deus poderia dizer algo sobre o meu tio e falou que meu tio precisava de mim. Então, eu entrei, sozinha, e o João de Deus perguntou o que eu queria, com a mesma cara de bravo de antes. Eu expliquei o que a entidade havia me recomendado.
Ele fechou a porta, a trancou e, quando se virou para mim, já estava com uma cara completamente diferente, de homem apaixonado. Ele disse que estava me esperando há muito tempo, que tivemos um laço muito forte na vida passada. Eu fiquei com ainda mais medo porque, para mim, ele estava encarnado. Aquilo me deixou paralisada.
Então, ele chegou bem perto de mim e disse que eu precisava da energia dele. Ele mandou que eu respirasse o ar que ele expirava. Ficamos fazendo essa troca de respiração por uns dois minutos.
Em seguida, ele disse que precisava fazer um diagnóstico, para ver se eu tinha alguma doença. Expliquei que estava lá pelo meu tio e que eu não precisava de ajuda. Ele insistiu e passou a mão por cima da minha roupa. Nesse momento, era nítido para mim que isso era errado, mas eu não tive reação, estava com muito medo e só pensava que meu tio precisava disso.
Depois, ele falou que precisava fazer um diagnóstico mais profundo. Então, ele enfiou a mão por dentro da minha roupa. Passou a mão por dentro do meu sutiã, pela minha barriga e desceu a mão por dentro da calça. Ele me tocou pela frente e por trás. E eu permaneci paralisada. Era virgem nessa época, não havia tido um namorado até então.
Depois disso ele me soltou. Falou pra mim que queria que eu voltasse, para ele me levar na cachoeira. Falou que a cura do meu tio dependia de mim e que, se eu contasse para alguém sobre o que havia acontecido, meu tio morreria. Ele disse ainda eu era filha da Casa e que a entidade seguiria todos os meus passos. Antes de eu sair, ele me deu dois remédios e uma água para beber, que estava lacrada, e destrancou a porta.
Saí pálida e com cara de choro. Minha mãe na hora percebeu que havia algo errado. Eu disse que não podia contar se não meu tio morreria, mas ela insistiu e garantiu que nada de ruim aconteceria. Depois que eu contei, ela ficou devastada, achou que a culpa era dela. Ela só sentou na calçada e ficou chorando por algum tempo.
Quando voltamos para a pousada, a gente contou para o meu tio. Mas ele não acreditou. Disse que esse era o diagnóstico e que não tinha maldade alguma. Mas minha mãe e eu sabíamos que aquilo tinha sido abuso sexual.
Decidimos antecipar nossa volta para São Paulo e pegamos o ônibus no sábado de manhã. Meu pai se assustou ao nos ver chegando antes da hora, mas minha mãe e eu não contamos nada. Tínhamos combinado que não contaríamos a ele porque meu pai poderia culpar a minha mãe por ter me levado, por ter me deixado entrar sozinha.
Depois disso, minha mãe dormiu comigo durante dois meses porque eu sonhava que ele vinha atrás de mim, que o João de Deus matava a minha família. Precisei ir ao psicólogo durante cinco meses. Uma vez, durante o banho, senti que tinha alguém no banheiro e, ainda com o chuveiro ligado, abracei a toalha.
Minha psicóloga dizia que eu deveria denunciar, mas eu não queria. Não queria viver tudo de novo. É uma mistura de vergonha, de medo. Medo do que vão falar, medo da reação da sua família, dos seus amigos. Medo de tudo. Ela chegou a me contar que já havia algumas denúncia contra o João de Deus, mas eu não acreditei. Achei que ela falava aquilo só para me encorajar a fazer o mesmo.
Passei onze anos da minha vida achando que nunca havia tido nenhum outro caso. Mas tomei um choque na última sexta-feira, quando vi os relatos na televisão. Minha mãe e eu não dormimos. Parecia que o que aconteceu comigo tinha sido no dia anterior. Todos os sentimentos voltaram — e com ainda mais força. Eu imagino como se sentem as mulheres que foram, de fato, estupradas. Imagino o quanto a vida delas não foi prejudicada.
Senti um misto de felicidade, tristeza, alívio e culpa. Pensei: ‘Estão vendo, eu estava falando a verdade’. Mas fiquei triste e culpada porque me perguntei: ‘E se eu tivesse denunciado naquela época? Será que teria acontecido isso com outras mulheres?’. Mas senti alívio porque meu caso não era tão grave quanto os que eu ouvi.
O que diz a defesa
Em sua primeira aparição após as denúncias João de Deus afirmou que é “inocente”. Ele deu a declaração ao sair da Casa Dom Inácio de Loyola, onde foi aplaudido por funcionários e fieis. O advogado de João de Deus, Alberto Toron, disse que seu cliente segue à disposição da Justiça para quaisquer esclarecimentos.
Como denunciar
Outras pessoas que, assim como Maria, foram abusadas por João de Deus podem prestar depoimento. Basta procurar o Ministério Público do seu estado ou então entrar em contato com o Ministério Público de Goiás, que está responsável pelo caso, pelo e-mail denuncias@mpgo.mp.br.
Quem estiver em São Paulo, o MP-SP tem um e-mail próprio (o que não descarta o anterior): somosmuitas@mpsp.mp.br.
Segundo a promotora paulsita Silvia Chakian, uma das responsáveis pela força-tarefa criada pelo Ministério Público de São Paulo, os depoimentos estão sob total sigilo e as vítimas serão ouvidas por equipes preparadas para essa situação. Ela também disse, em entrevista à Jovem Pan, que os relatos ouvidos até agora mostram que os crimes cometidos pelo médium são “perversos”.
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