O que se sabe até agora sobre as acusações de abuso sexual contra o médium João de Deus

  • Por Rafael Iglesias
  • 10/12/2018 15h59 - Atualizado em 10/12/2018 20h57
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Ed Ferreira/Estadão Conteúdo Médium atendeu famosos e recebeu pelo menos três presidentes da República

Investigado pelo abuso sexual por mais de 200 mulheres, o médium João de Deus atua há 40 anos com tratamentos espirituais em Abadiânia (GO). Ele diz realizar tratamentos e “cirurgias espirituais” por meio de entidades que incorpora. Na lista de pacientes figuram nomes como os dos ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, que, diagnosticados com câncer, recorreram à fé.

Algumas acusações foram reveladas na madrugada de sábado (8), quando o programa “Conversa com Bial” da TV Globo entrevistou vítimas, das quais apenas uma se identificou: a holandesa Zahira Lienike Mous. A denúncia tardia, segundo elas, é justificada pela chantagem emocional que João promovia. “Se você não fizer o que eu estou falando, a sua doença vai voltar”, dizia ele, segundo os relatos.

Depois que o gatilho de acusações foi apertado, no domingo (9), outra mulher procurou a imprensa para revelar que foi abusada sexualmente pelo médium. O crime aconteceu há 12 anos, quando ela estava grávida. Segundo a mulher, ele afirmava, ao tocá-la: “O que nós estamos trabalhando aqui é uma entidade que te possui sexualmente.”

Defendido pelo advogado e doutor em Direito Penal Alberto Toron, o médium de 76 anos nega as acusações. Toron declarou a uma emissora de televisão que vai procurar nesta segunda-feira (10) a polícia, a justiça e o Ministério Público para colocar seu cliente à disposição para prestar depoimentos e colaborar com a investigação.

Segundo o Ministério Público de Goiás, denúncias contra o médium já existiam desde 2010. Em 2012, ele chegou a ser julgado por abuso sexual, mas foi inocentado por falta de provas. Nesta segunda-feira (10), uma força-tarefa foi iniciada para investigar o caso. A maior parte das denúncias foram feitas após a exibição de entrevista com vítimas dos possíveis delitos.

As acusações

Até o momento, pelo menos 200 mulheres procuraram autoridades para denunciar estupros e abusos sexuais mediante fraude, inclusive de vulneráveis. De acordo com o promotor Luciano Miranda Meireles, que cuida das apurações, a Casa de Dom Inácio – onde atua o médium – pode ser interditada, já que é grande a quantidade de relatos de crimes.

Zahira, única a se identificar em reportagem, disse ter conhecido João de Deus em 2014. Depois de pesquisar sobre o tratamento espiritual, foi até Abadiânia sozinha. “É um cenário bem bizarro. Você, de certa forma, acha que vai receber a cura”, contou. Os abusos começaram uma semana depois dessa primeira visita, intermediada por um amigo.

O médium a levou para uma sala reservada, para uma sessão em busca de possíveis milagres. Colocou-a de joelhos. “[Ele] Abriu a calça, colocou a minha mão no pênis dele e começou a movimentar a minha mão. [Eu] estava em choque. Enquanto isso, ele continuava falando da minha família e disse que eu deveria sorrir”, relatou.

Dias depois, ele a levou a um banheiro. “Um padrão parecido, mas ele deu um passo adiante: me penetrou por trás.” O estupro só aconteceu porque a holandesa havia procurado João de Deus para tentar superar o trauma de outro abuso sexual sofrido anteriormente. Em nota, a assessoria de imprensa do médium “rechaçou” as acusações.

Além de Zahira, uma brasileira também foi entrevistada, mas não se identificou. Ela relatou que procurou o centro espiritual este ano, após ser diagnosticada com câncer de mama. A “cirurgia” foi marcada para abril, sem que João contasse detalhes. “Achei estranho, mas estava desesperada. Senti o membro dele nas minhas nádegas. Comecei a chorar e pensava: ‘como vou sair daqui?’.”

Outra mulher, de Minas Gerais, revelou ao jornal O Globo que foi abusada em 2013, quando tinha 27 anos. João de Deus colocou a mão dentro das calças dela e que ele tentou guardar uma “medalha” no decote dela. De acordo com o relato, ele chegou a oferecer uma “mesada” para que ela vivesse na Casa de Dom Inácio. “Disse que poderia ajudar no financiamento de um negócio, se eu quisesse.

As investigações

O Ministério Público de Goiás formou uma força-tarefa, que envolve quatro promotores, para investigar as denúncias de crimes sexuais contra João Teixeira de Faria, o João de Deus. O grupo contará com o apoio de duas psicólogas para a coleta de depoimento das vítimas, o que deve começar já nesta semana, de acordo com texto do MP.

Em entrevista coletiva nesta segunda-feira (10), os promotores pediram que todas as vítimas procurem o órgão pessoalmente ou por e-mail (denuncias@mpgo.mp.br) para registrar suas histórias. “Somente a partir desses testemunhos é que a instituição terá elementos para definir o rumo processual a ser seguido e se haverá necessidade de medidas cautelares.”

O endereço eletrônico criado exclusivamente para o “caso João de Deus” tem sigilo assegurado e será acessado somente pelos componentes do grupo de trabalho. “Essa força-tarefa foi criada para ampará-las [as vítimas], para que sintam seguras e confiem que o Estado vai apurar e punir eventuais crimes”, ponderou a promotora Patrícia Otoni.

A defesa

A assessoria de imprensa do médium negou os crimes, em nota distribuída à imprensa. “Há 44 anos, João de Deus atende milhares de pessoas em Abadiânia, praticando o bem por meio de tratamentos espirituais. Apesar de não ter sido informado dos detalhes da reportagem, ele rechaça veementemente qualquer prática imprópria em seus atendimentos”.

Ao jornal O Globo, a assessoria disse que as acusações são “falsas e fantasiosas”. Ao programa Fantástico, o advogado Alberto Toron disse que seu cliente “nega as acusações, recebidas com indignação”. A Jovem Pan tentou falar com Toron, mas a reportagem foi informada de que ele está em Curitiba (PR) e, por enquanto, não se pronunciará.

A repercussão

Após a divulgação das denúncias, a Federação Espírita Brasileira divulgou falou sobre a atuação de médiuns, sem citar João de Deus. “O serviço espiritual não deve ocorrer isoladamente, apenas com a presença do médium e da pessoa assistida. [O Espiritismo] não recomenda a atividade em trabalho individual. Estes não estão vinculados ao Movimento Espírita nem seguindo sua orientação.”

“A Doutrina Espírita atua com o trabalho de caridade material e espiritual desinteressada, sem nenhum propósito a não ser o de auxiliar os necessitados. A Federação Espírita Brasileira, junto ao Movimento Espírita, fundamentada na tríade Deus, Cristo e Caridade, pratica o bem, levando consolo e esclarecimento à humanidade”, diz o texto.

Ao tentar surfar na onda do assunto – um dos mais comentados na internet – o senador Renan Calheiros (MDB-AL) afirmou em uma rede social que João de Deus “não é um Roger Abdelmassih, um Lasier [Martins, senador do PSD-RS] qualquer, e deve, até pelo menos o trânsito em julgado, continuar curando a sociedade, que parece mais doente e odienta”.

Comparados com o médium, Abdelmassih já foi condenado por abusos sexuais que somaram pena de 278 anos de prisão, enquanto Lasier Martins foi acusado de agressão pela ex-esposa Janice Santos. O caso do senador foi arquivado em 2017 pelo Supremo Tribunal Federal (STF). “O médium não é o maior problema do Brasil”, escreveu Renan Calheiros.

Os famosos

Em quatro décadas de atuação, João de Deus já recebeu diversas personalidades. Além de Lula e Dilma, ele também atendeu o presidente Michel Temer e o ministro do STF Luís Roberto Barroso. A lista de pacientes e testemunhas do trabalho dele tem nomes como Xuxa, Giovanna Antonelli, Bruna Lombardi, Paulo Skaf e até mesmo o da apresentadora norte-americana Oprah Winfrey.

Em 2016, a atriz Bárbara Paz procurou o médium para tentar superar a perda do marido, o cineasta Hector Babenco. “O luto demora muito e ainda não passou. Estava muito fraca dentro de mim e não conseguia dormir. Precisava de ajuda para fazer a minha peça tranquila e saber que a vida segue, que não acaba”, desabafou a atriz em um programa de televisão.

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