Vacinação de doenças ‘perigosas e evitáveis’ despenca, e milhões de vidas ficam em risco
No último ano, país não atingiu o nível mínimo recomendável de imunização para as principais enfermidades como sarampo, tuberculose, hepatite B, coqueluche, tétano e difteria
Durante a pandemia da Covid-19, as vacinas ocuparam o centro do debate público. Efetividade, número de doses e até mesmo os laboratórios desenvolvedores foram pautas entre os brasileiros durante o período de imunização. Porém, com a volta das atividades presenciais e o retorno da vida a um certo grau de normalidade, a vacinação do país para doenças que já possuem imunização continua a despencar. Enfermidades como tuberculose, sarampo, caxumba, rubéola e a paralisia infantil — algumas delas erradicadas anteriormente — podem voltar a acometer os mais jovens em decorrência da queda vertiginosa nos índices de vacinação, já que os níveis de aplicação encontram-se nos patamares mais baixos dos últimos 30 anos. A equipe de reportagem da Jovem Pan buscou dados sobre o nível das imunizações e conversou com especialistas para entender o tamanho do impacto que a escolha em não imunizar a população mais jovem pode ter no futuro brasileiro a médio e longo prazo.
Brasil como referência e queda nos índices
Em 2016, a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) premiou o Brasil com o certificado de país com o território livre do sarampo. Naquele momento, o país registrou casos extremamente isolados da doença. No ano seguinte, o índice de diagnósticos positivos para o sarampo disparou e, até 2021, foram contabilizados mais de 40 mil doentes pelo vírus, dos quais 40 faleceram. Em 2019, a Opas retirou o certificado. De acordo com informações da plataforma DataSus, a vacina BCG (que previne a tuberculose) oscilava entre 98% e 100% da cobertura vacinal no país entre os anos de 2011 e 2018. Porém, a partir do ano seguinte, houve uma queda acentuada, e o nível caiu para 87% da população imunizada. Em 2020, nova queda, com 74%. No último ano, em 2021, a tendência de queda se manteve e apenas 68% da população elegível tomou a vacina.
O mínimo recomendado é de 90% da faixa etária completamente imunizada. A imunização contra o rotavírus — que evita a diarreia grave em crianças — oscilou entre 85% a 95% da cobertura vacinal entre 2011 e 2019. Em 2021, o índice atingiu os 70%. Já a tríplice viral, que previne o sarampo, a caxumba e a rubéola, variou de 86% a 100% no mesmo período. No último ano, apenas 73% da faixa etária elegível se imunizou. A imunização contra a paralisia infantil esteve entre 84% e 100% e, em 2021, somente 69% da cobertura vacinal tomou o imunizante. No último ano, pouco mais de 60% do público infantil foi vacinado contra a hepatite B, a coqueluche, o tétano e a difteria. O mínimo recomendado para que a imunização coletiva seja atingida, para estas doenças, varia de 90% a 95%.
Possíveis consequências
Para Ana Paula Burian, pediatra infectologista e membro do Comitê Científico do Instituto Lado a Lado pela Vida (LAL), “as vacinas são vítimas do próprio sucesso”. Segundo a especialista, outras gerações acompanharam pessoas que foram acometidas por doenças que hoje estão erradicadas. Isso ampliou o grau de importância para a vacinação. “Você pode não ter visto um caso de poliomielite, mas os seus pais já viram e eles tinham tanto medo de você ter polio que levavam os filhos para se vacinar em todas as campanhas. Esse medo, a juventude não vai ter para vacinar os filhos. Nem os médicos novos têm, porque não viram [casos de poliomielite]. Eu vi muita morte por meningite, por tétano, por tuberculose, vi muita doença que hoje não se vê com frequência”, alertou.
Um dos possíveis efeitos do baixo nível de aplicação das vacinas, no caso da tuberculose, será um aumento no número de infecções pulmonares e uma maior facilidade de generalização da doença devido à falta de anticorpos. Caxumba e meningite, em casos graves, podem levar a quadros de surdez. Já o sarampo retarda o crescimento e diminui a capacidade cognitiva do cérebro causando inflamações na massa encefálica. Difteria acomete os rins e pode levar o par de órgãos à falência. Coqueluche desenvolve lesões cerebrais com sequelas vitalícias.
“Pacientes já me perguntaram: ‘Vacino meu filho pequeno contra a Covid-19?’ Muitas pessoas relatam ter esquecimento após contrair o coronavírus. Imagina isso em uma criança de cinco a sete anos de idade, que está na fase de alfabetização. Como os pais e professores vão conseguir mensurar uma falta de memória? Imagine o impacto disso na vida futura de uma criança que, no processo de alfabetização, não consegue aprender e ninguém consegue perceber que talvez seja pela Covid. Os impactos se estendem para as áreas educacional e social. Não adianta pensarmos na saúde como um único ponto exclusivo”, conclui a especialista.
Caso uma gestante contraia rubéola durante a gravidez, o bebê corre um elevado risco de nascer com deformações cardíacas, catarata ou glaucoma, além do risco de aborto. No caso da paralisia infantil, o vírus pode atingir o sistema nervoso da criança e imobilizar os membros superiores ou inferiores do jovem – braços e pernas. Segundo a doutora, é preciso quebrar algumas crenças referente às doenças imunizáveis. “Esse ano tivemos 12 casos no Espírito Santo de janeiro a maio, sendo nove em adultos com cinco óbitos. Polio, que pensam também que é uma doença de criança, o antigo presidente dos Estados Unidos, Franklin Delano Roosevelt, foi acometido pela doença, com consequência se imobilização de suas pernas, aos 31 anos de idade”, explicou.
A especialista ressalta que a prevenção tem um impacto orçamentário menor que o tratamento das doenças previsíveis, já que é “muito mais barato o investimento em vacinas ou um exame para diagnóstico precoce do que tratar um paciente doente”. “O PNI surgiu em 1973, ou seja, passou por ditadura e governos de direita, centro e esquerda”, diz a especialista, que pediu um Programa Nacional de Imunizações (PNI) “empoderado e independente”.
O que explica a baixa vacinação?
De acordo com a pediatra e infectologista, o governo nos últimos anos passou a diminuir o incentivo à população para se vacinar. Nos números do orçamento público, é possível comprovar que o desincentivo parte da diminuição de verbas para propaganda de imunização. “Antigamente passavam carros nas ruas, havia propaganda no intervalo de grandes jornais, de novelas convocando para campanhas de vacinação e hoje isso não acontece. A gente tinha dois ou três canais de televisão. Hoje em dia, temos um milhão de outras oportunidades de chegar até as pessoas ou perdê-las”, conclui. Segundo dados coletados do Ministério da Saúde pela agência Repórter Brasil, via Lei de Acesso à Informação, houve uma diminuição de 66% no repasse para publicidade de campanhas de vacinação entre os anos de 2017 e 2021. Em reais, a queda no investimento para estimular a imunização foi de R$ 97 milhões para R$ 33 milhões.
Preocupação global
Baseado nas informações divulgadas pelo Programa Nacional de Imunizações (PNI), vinculado ao Ministério da Saúde, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) realizou um alerta público em seu site no último mês de abril. A oficial de Saúde da instituição em solo brasileiro, Stephanie Amaral, alertou que 3 em cada 10 crianças no país não receberam vacinas que podem salvá-las de eventuais mortes no futuro. “No Brasil, a vacinação de rotina para crianças menores de 5 anos vinha sofrendo quedas desde 2015. Para reverter esse cenário, é fundamental fortalecer os programas de imunização e os sistemas de saúde, e incentivar famílias a vacinar as crianças. Na primeira infância, crianças recebem imunização contra, pelo menos, 17 doenças. O declínio nas taxas de vacinação coloca milhões de crianças e adolescentes em risco de doenças perigosas e evitáveis”, pontuou.
O Ministério da Saúde foi questionado pela equipe de reportagem da Jovem Pan sobre as causas do baixo nível de vacinação no país, quais políticas públicas foram elaboradas para o retorno da imunização em níveis satisfatórios e se há um planejamento para lidar com os futuros impactos estruturais e orçamentários no sistema de saúde nacional, mas não houve resposta até a publicação desta matéria.
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