Chicotadas e exorcismos, a cura fatal dos mulás afegãos

  • Por Agencia EFE
  • 04/03/2015 10h50

O gravador de talismãs afegão Agha Sahib Taimani em sua casa da capital Cabul; castigos fatais EFE/Baber Khan Sahel O gravador de talismãs afegão Agha Sahib Taimani em sua casa da capital Cabul

Chicotadas e isolamento são apenas alguns dos métodos aplicados por mulás afegãos em pessoas que procuram por ajuda, dispostas a se submeter às práticas ilegais desses líderes, que muitas vezes têm resultados trágicos.

As áreas rurais no Afeganistão, repletas de pessoas com pouca ou nenhuma instrução, são um terreno fértil para oportunistas. Muitos afegãos preferem procurar adivinhos e gravadores de talismãs para resolver questões de saúde, do que ir ao médico.

Não são poucos os que acreditam que talismãs e amuletos têm poderes mágicos e são capazes de curar doenças, reverter quadros de infertilidade, conseguir um casamento, resgatar negócios falidos e até mesmo ajudar jovens que pretendem começar uma nova vida no Ocidente. Neste contexto, os mulás – líderes religiosos – se apresentam como salvadores.

Há algumas semanas, uma família de Kunduz levou uma mulher grávida de oito meses para que um mulá a visse. O líder a submeteu a uma prática de exorcismo conhecida como “Dost Muhammad”, na qual a pessoa leva chibatadas. No final das contas, a moça precisou ser levada para um hospital.

“A mulher chegou ao hospital em péssimas condições. O bebê havia morrido de apoplexia e não havia alternativa a não ser retira-lo do útero da mãe”, declarou à Agência Efe Abdul Qudoos Miakhil, chefe do hospital local.

“A paciente sofreu uma pré-eclâmpsia (quando a mulher grávida tem um aumento da pressão arterial), isto nada tem a ver com demônios”, acrescentou Miakhil.

Golpear pessoas com tecidos molhados, mantê-las isoladas em quartos escuros, escrever misteriosas figuras em suas peles e recitar ou escrever versos do Corão para fazer amuletos são outras práticas místicas desses mulás.

Durante 20 anos, Shir Khan levou sua mulher a dezenas de curandeiros, sem sucesso, para tentar livrá-la da infertilidade. Ao viajar para a Índia e recorrer à medicina convencional, o casal finalmente conseguiu colocar um “ponto final a 20 anos de miséria”.

O caso de Hamida, de 29 anos, foi mais grave. Após dar à luz quatro filhas, a moça, que sofria uma grande pressão de sua família para ter um menino, decidiu recorrer a um mulá, que, como parte do tratamento, escreveu algumas figuras misteriosas em seu peito.

“Quando meu marido viu os desenhos, ficou muito triste e começou a me tratar como um animal. Perdi o respeito da minha família e até mesmo das minhas filhas”, contou Hamida.

“Há dois anos meu marido se casou com outra mulher. Agora tenho que passar minha vida com a vergonha e sofrer as dificuldades de um erro que nunca quis cometer”, disse, entre lágrimas.

O psicólogo e professor da Universidade de Cabul, Shamsuddin Shams, explicou à Efe que as mulheres sem formação são as principais vítimas do oportunismo destes líderes religiosos.

De acordo com dados do Ministério da Educação, cerca de 80% das afegãs são analfabetas.

“Há mulás por todo o país, que muitas vezes cometem atos imorais e criminosos, como espancar clientes, deixa-los trancados em quartos escuros, os impedir de falar durante dias ou abusar de seus valores culturais”, alertou Shams, ao reivindicar mais esforços do governo para criar uma “consciência pública” sobre o problema.

Rafiullah Bidar, porta-voz da Comissão Independente de Direitos Humanos do Afeganistão (AIHRC, em inglês), disse à Efe que “levar as pessoas a ficarem doentes ou atacar sua dignidade é uma violação dos direitos humanos que não deveria ocorrer”.

Os gravadores de talismãs, adivinhos e exorcistas não estão oficialmente registrados e não existem dados sobre o número de oficiantes destas superstições que não são novas para os afegãos e remontam a uma época anterior ao islã.

“Infelizmente, alguns oportunistas e charlatões sob o nome de mulá realizam ações contrárias ao islã para fazer dinheiro, o que muitas vezes tem resultados terríveis”, afirmou à Efe um membro do Conselho de Ulemás, Mawlawi Faizullah Imaq.

No entanto, os mulás que aplicam tais práticas defendem que nem todos as fazem com más intenções. “

“O que fazemos é pelo bem das pessoas, porque os versos do Corão sem dúvida curam doenças”, declarou à Agência Efe Qari Samiullah, um gravador de talismãs, que admitiu que alguns de seus colegas “podem fazer mau uso dos métodos e até mesmo empregar técnicas proibidas”, mas afirmou que “isto não pode ser aplicado a todos os mulás”.

Baber Khan/EFE – de Cabul

 

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