Da selva de pedra ao sertão: O Brasil por trás de uma carga
O repórter Daniel Lian pegou carona em um caminhão e traz em uma matéria especial o retrato de quem ganha a vida rodando as estradas brasileiras. Ouça a reportagem completa AQUI.
“Não é nada fácil. Queria estar em casa… mas não dá. As contas falam mais”. A fala de Rodrigo Meca é embargada por choro e emoção. Ela traduz a realidade de um Brasil que para muitos é desconhecido.
O caminhoneiro de meia-idade, barba por fazer, camisa surrada pelas longas horas na estrada, bermuda e boné, muito receptivo, expelindo simplicidade e simpatia, seu Rodrigo nos convida a viajar em sua boleia para ver de perto a rotina daqueles que desbravam as rodovias brasileiras.
Ele deixara o sul do País. A entrega da carga tem data e hora marcada na região centro-oeste. Embarcamos na singela cabine que seu Rodrigo transformou em casa. “Está uma bagunça! Imagina como eu faço para dormir aqui. Cabem eu e minha mochila, tenho que tirar a mochila para dormir”.
Acidentes
Os acidentes fazem parte do cotidiano de quem trafega nas rodovias. No caminho, flagramos uma batida que parou o trânsito. Cerca de 40 minutos sem passar da primeira marcha. E a preocupação vem à tona: o horário da entrega.
O motorista alerta: “tem que esperar e manter a cabeça no lugar porque se tu não mantém, vai querer acelerar, vai andar a 100 km/h, 110 km/h, quando vê está 120 km/h e de repente você pode não chegar né”.
A má condição do asfalto implica em uma série de acidentes. O professor da Universidade Federal de Brasília, engenheiro e patologista de pavimentações, Dickran Berberian, afirma que a corrupção com o desvio de verbas contribui para agravar o cenário. “Nos temos bons projetistas, bons solos para compactação e boa massa asfáltica. Falta mesmo é criar vergonha”, diz. “Não são só ladrões, não. São assassinos, porque a quantidade de gente que morre por falta de manutenção ou buraco, falta de sinalização, é muito grande”.
Caminhão perde controle, bate em ônibus e carros e quatro morrem em acidente no Distrito Federal em 2014 (Foto: Agência Brasil)
Borracharia
O resultado das condições precárias das rodovias impacta diretamente na vida dos caminhoneiros. Paramos numa área de serviços à beira da estrada. E, na borracharia, a realidade. O caminhão de Everaldo “pegou um prego” na estrada e “o consertinho, a vulcanizaçãozinha” do pneu saiu “só R$ 40”. “Por enquanto está saindo barato, mas na viagem vai sair mais caro, porque sai e na viagem você gasta muito dinheiro. Gasta bastante. É a vida, é assim mesmo”.
Seu José Luís, dono da borracharia, conta que serviço não falta. Seja de dia, à noite, ou de madrugada. “Aqui é pauleira. É direto arrumando o pneu dos motoristas. O tempo todo. Pneu furado não tem jeito, é o dia todo”. Sobre o faturamento à beira da estrada, José cita o ditado: “é aquelas coisa, o mal dos outros acaba beneficiando a nós, dono da borracharia, então graças a Deus está bem (o movimento)”.
Os problemas no caminhão também atingem o nosso anfitrião Rodrigo. “Tive problema de tudo que é tipo nesse caminhão e nos outros que dirigi pela mesma empresa. Embreagem, questão de freio, de cilindro… ih, teve de tudo”. Em sua primeira viagem, as válvulas de distribuição de freio foram danificadas e ele teve de ficar cinco dias parado. “Eu não entendia quase nada de caminhão. Só sabia dirigir”, recorda. Situação complicada? “Muito. Mas é bom que a gente aprende mais na vida sobre essas coisas ruins. Se fosse tudo mil maravilhas não seria tão bom”.
Custo Brasil
A economia também é duramente abalada pelas péssimas condições na rodovia. Tanto a indústria quanto o agronegócio são penalizados, refletindo no aumento do chamado “Custo Brasil”, termo que expressa a dificuldade de se investir no País.
(Foto: Sérgio Vale/Secom)
O presidente da Associação Nacional de Transporte de Cargas e Logísticas, José Hélio Fernandes, enfatiza que é preciso atenção com urgência a esse empecilho do crescimento. As estradas ruins geram aumento do consumo, desgaste do veículo, além de um desconforto e desgaste do motorista maiores. Quando se trabalha com uma capacidade inferior à do veículo, “evidentemente a repercussão é automática nos custos”, diz Fernandes.
Crise
Como se não bastasse a situação caótica em muitas estradas, a crise reduziu substancialmente o número de fretes. Os valores também desabaram. Há 33 anos no mercado, Edelson José de Almeida é agenciador de cargas. Ele intermedia e aproxima caminheiros e transportadoras. E diz: “eu pego as cargas das empresas e passo para os caminhoneiros. Eu carregava de 300 a 400 caminhões por dia. To carregando 20 caminhões”.
Paulo Hideaki, administrador de um shopping com diversos serviços de apoio a caminhoneiros, indica que a crise gerou reflexos drásticos no setor. “Podemos medir isso pela quantidade de caminhões que estão estacionados”, relata. “São caminhões que não deveriam estar parados”, lamenta.
(Foto acima: Edelson, em seu local de trabalho, onde intermedeia fretes para caminhoneiros; Acervo Pessoal)
Alimentação e sono
E como é a alimentação e o sono do motorista? Seu Rodrigo revela que a corrida contra o tempo leva a um cenário desregrado. “Tem dias em que eu nem como na parte do meio-dia. De manhã não costumo tomar café, meio-dia nem como, daí como de tarde um pastelzinho e de noite tomo um café. Às vezes pego marmita e faço na caixa do caminhão”, diz. “O horário é tu que faz. Geralmente eu como 15 minutos, 10, e já saio. Não pode perder tempo porque a gente mora longe e o frete para lá é escasso, além de barato”.
Seu Rodrigo Meca diz que nunca fez o uso de anfetamina, o chamado “rebite”, utilizado por muitos caminhoneiros para se manterem acordados. Todavia, o produto não falta no mercado ilegal nas estradas espalhadas pelo País.
Anfetamina apreendida pela Polícia Rodoviária Federal em estradas
O clínico-geral do Hospital Sírio Libanês, Alfredo Salim Helito, fala sobre a manutenção de uma alimentação desregrada e os perigos vinculados ao uso do “rebite”. O uso de psicotrópicos ao volante e as más condições de descanso e alimentação “levam a grandes acidentes de estrada, à violência, à morte no trânsito”.
Pela similaridade de efeitos, “a cocaína é um tipo de anfetamina”, explica.
O descontrole alimentar e no sono, além de doenças venéreas propagadas pela prostituição de estradas, fazem do “caminhoneiro um problema de saúde pública”, comenta o médico.
Raramente há um tempinho para se desfrutar da comida bem feita. A senhora Ivanete, que trabalha em um restaurante à beira da estrada, aponta que o prato não é o da casa dos caminhoneiros, mas é feito “no capricho”. Ela revela a preferência dos frequentadores: prato feito de chuleta com polenta “bem servido e caprichado”. A iguaria custa R$ 13 no almoço e R$ 10 na janta.
(Rodrigo e amigo descansam ao lado de caminhão; às vezes a refeição é feita ali mesmo, no improviso; foto: acervo pessoal)
Enquanto não há carga disponível, o assunto entre os caminheiros sobre a mesa é um só: “as contas, o cheque atrasado, o cheque pré-datado sem fundo, boleto atrasado”. “O papo é só esse: ‘gente, como vamos pagar as contas, não tem carga’”, afirma um deles, rindo com os amigos para se distrair durante o almoço.
Saudades
Com os olhos marejados, o caminhoneiro gaúcho de Farroupilha, hoje residente em Bento Gonçalves, é enfático ao responder que a saudade da família é o que mais dói. Casado há oito anos com Fernanda, Rodrigo diz: “Faz 12 dias que estou fora… queria estar em casa já, mas não é o que a gente quer às vezes, né…”. Com duas viagens por mês, da região sul para Brasília e Goiânia geralmente, são até 17 dias por mês fora do lar. “Tem que ir né”.
O medo de não voltar para casa também o acompanha a cada curva e troca de marcha. Além dos perigos das más condições de vida e da estrada, Rodrigo teme os assaltos.
Histórias como a de seu Rodrigo se confundem com as de milhares de brasileiros que carregam não só os pilares da economia de um País, mas esperanças e sonhos dentro de uma boleia.
“Na verdade eu estou vivendo a vida do meu patrão. A minha está lá. Deixei em casa lá. Faz algum tempo já. Aqui, minha cama é aqui, minha casa, minha cozinha, tudo é aqui agora…”.
Ele não tem esperanças de que isso mude, mas projeta: “vou largar isso logo para não ficar como muitos que já vi. Não é fácil”.
(Cena rara: Rodrigo Meca ao lado da esposa, Fernanda Perondi, na cabine do caminhão; há vezes em que o caminhoneiro fica quase três semanas por mês sem ver a mulher)
Comentários
Conteúdo para assinantes. Assine JP Premium.