Dr. Fritz e as cirurgias “com o coração” em Sabará
Victor Machado.
Sabará (MG), 9 jun (EFE).- Ao observar em silêncio e encostado na parede enquanto fazia anotações, nunca imaginei que em algum momento seria chamado por doutor Fritz para retirar uma agulha de aproximadamente cinco centímetros de comprimento da barriga de um paciente deitado na maca. Naquele instante, senti na pele – na minha e na de outra pessoa – um pouco do que é uma cirurgia espiritual.
“É um ser humano à sua frente, tire com o coração”, orientou com voz rouca e forte sotaque alemão a entidade manifestada no corpo de uma mulher, a médium Eliane, que acompanhava de perto o pequeno pedaço de aço ser cautelosamente retirado, como se o estivesse removendo do meu próprio corpo.
A agulha retirada surgiu completamente limpa. Não tinha sequer uma gota de sangue. Tampouco o corpo do paciente, que se manteve relaxado, sem qualquer reação, e com os olhos vendados por uma gaze ao longo de todo o processo.
Após esse momento, doutor Fritz fez o curativo e prosseguiu para o próximo atendimento na Instituição Casa de Auxílio e Fraternidade Olhos da Luz, em Sabará (MG), onde atende gratuitamente centenas de pessoas das mais diferentes religiões aos sábados e domingos há 17 anos.
Há quem vá ao local em busca de uma cura instantânea, mas a cirurgia espiritual não substitui o tratamento convencional. “Só o médico na terra pode curar a carne”, reza a recomendação dada a todos os presentes no salão principal.
“Meu médico aprova o procedimento. Vim desta vez porque estou parando de fumar após 20 anos e passei a sentir dor na garganta, mas sei que tenho que fazer o tratamento físico e o espiritual. A assistência médica está difícil e cara lá fora, mas não se pode dispensar o médico físico. É ele quem dá remédios”, analisou Maria das Graças Vieira, de 66 anos, que já recorreu à cirurgia espiritual outras vezes.
Além dos três diferentes tamanhos de agulhas, o doutor Adolph Fritz utiliza, como instrumentos cirúrgicos, facas de cozinha, tesouras e bisturis. Todos os utensílios são esterilizados ou descartáveis e não há anestesia, mas nenhuma das pessoas que pude entrevistar relatou ter sentido dor.
“Não senti nada, nem olhei na hora”, resumiu Alessandro Corrêa, que não percebeu quando doutor Fritz inseriu uma parte da lâmina de uma faca em seu ombro direito, atingido por um tiro há anos e no qual ainda sente desconforto.
A casa costuma iniciar as cirurgias espirituais de manhã cedo, às 5h. Antes, porém, os dirigentes do salão principal explicam aos presentes que o procedimento é gradativo, então é necessário que retornem. Até esse horário, a médium Eliane se prepara em uma sala reservada para receber o doutor Fritz.
Outro ponto destacado durante as instruções faladas, com o auxílio de um microfone ligado a uma caixa de som, é que os pacientes devem informar antes caso não queiram uma cirurgia espiritual com corte – que nem sempre é feito -, apenas para deixar claro.
Para adentrar a sala de cirurgia, precisei fazer como os demais. Do salão principal, fui encaminhado a um pequeno quarto onde as pessoas recebem o passe, um ritual de bons fluidos realizado com as mãos pelos voluntários da casa, chamados de “tarefeiros”, que são escolhidos e têm as funções delegadas por doutor Fritz. Poucos minutos depois, chega a hora de entrar no local onde o tratamento é feito.
Sete macas e cerca de 20 voluntários de diferentes funções e idades, incluindo uma criança, dividem um espaço de caminhos estreitos com o doutor Fritz, que costuma demorar menos de dois minutos em cada atendimento. Apesar de falar pouco, sua voz é essencial para orientar os tarefeiros a cada pedido. Além de manter o silêncio na sala, todos precisam ser ágeis quando solicitados.
Diferente dos tarefeiros, que precisam se alimentar e ir ao banheiro diversas vezes, doutor Fritz trabalha incessantemente com o mesmo dinamismo até o último paciente ser atendido, independentemente de quantas horas se passarem. A casa tem horário para abrir, mas não para fechar, e já chegou a funcionar das 5h às 2h do dia seguinte, segundo relatos.
Mesmo com um ventilador ligado e uma janela aberta, o calor constante na sala pouco iluminada deixa os azulejos das paredes e o chão úmidos. Nesse local, as pessoas são tratadas com tesouras dentro do nariz, cortes de bisturi no joelho, agulhas inseridas na parte de cima da cabeça, até simples toques feitos com as mãos.
Todos os atendidos devem esperar no salão principal para receber na boca uma medicação chamada “vida”, além de levarem algumas doses para casa. De acordo com os tarefeiros, a “vida”, que fica armazenada em um recipiente transparente, é nada menos que água manipulada de diferentes formas para cada paciente ao entrar em contato com o doutor Fritz.
“Sinto como se tivesse acabado de sair de uma cirurgia normal. Ele enfiou o dedo lá dentro do meu olho direito (que foi enfaixado). Senti como se ele usasse todos os equipamentos de um médico, mas não. Eu já tinha ouvido falar dele, mas só resolvi vir agora, em busca da cura”, detalhou Flávio Firmino, de 32 anos, que sofre de glaucoma e catarata e recorreu à cirurgia espiritual pela primeira vez, após ser operado por um médico em 2012 e os problemas persistirem.
De acordo com a presidente da casa, Zumira Maria, “doutor Fritz atende não só as pessoas, mas também os espíritos que vêm com elas. Segundo ela, o centro conta com 240 tarefeiros, cada um com uma medalha personalizada com o nome do dono e o símbolo do exército brasileiro.
A explicação seria que a entidade de Dr. Fritz pertenceu ao exército da Alemanha durante a Primeira Guerra Mundial, possível época de sua morte, e era companheiro de José Pedro de Freitas, que teria encarnado no Brasil posteriormente. É dito que José Arigó, como ficou conhecido, foi o primeiro a incorporar Dr. Fritz em território brasileiro.
Apesar de atender a centenas de pessoas por dia incorporado por Eliane, a familiaridade de Dr. Fritz com o tema nada se parece com a da médium, que pessoas próximas afirmam ter medo de agulhas. Mas as diferenças não se restringem apenas à habilidade e ao conhecimento sobre o assunto.
Somado ao timbre rouco com sotaque, doutor Fritz anda rápido, sempre de maneira corcunda, e mantém a testa franzida o tempo inteiro. Eliane, uma aposentada de 48 anos, tem fala doce, um semblante que transmite a sensação de tranquilidade e precisa do auxílio de uma cadeira de rodas para se locomover, fruto do desgaste físico. Médium inconsciente, ela não se lembra de nada do que ocorre durante a manifestação de doutor Fritz.
A incorporação exige muito de Eliane, que está com diversos problemas de saúde. Afinal, diferentemente dos voluntários que o ajudam, doutor Fritz trabalha ininterruptamente. No último sábado, 580 pessoas foram atendidas até as 17h, somando 12 horas de trabalho em ritmo dinâmico.
As atividades de domingo terminaram mais cedo, às 9h30, após um pedido de doutor Fritz para poupar a médium. Ao todo, 336 pessoas foram atendidas, dessa vez também no salão principal, onde a entidade aconselhou as pessoas a não desperdiçarem alimentos. No entanto, se depender de Eliane, a vontade de ajudar continuará a prevalecer sobre o cada vez mais abalado estado de saúde dos pacientes.
“Dor, para mim, é apenas um momento. Como todos os outros, ela passa. É preciso dar algo de si para os outros”, explicou a médium, se colocando à disposição para continuar o trabalho, independente de sua condição física. EFE
vnm/id
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