Mudança no teto de gastos é ‘assalto institucionalizado’ aos cofres públicos, diz ex-secretário do Tesouro

Carlos Kawall, diretor da ASA Investments, afirma que governo enveredou para populismo escancarado e compara situação aos fatos que antecederam a crise no governo de Dilma Rousseff

  • Por Gabriel Bosa
  • 23/10/2021 14h49
Leonardo Rodrigues/ Divulgação Carlos Kawall Para Carlos Kawall, diretor da ASA Investment, mudanças qualificam quebra do teto de gastos

A mobilização do governo federal para flexibilizar as regras do teto de gastos é um “assalto institucionalizado” aos cofres públicos e representa um desmonte do arcabouço fiscal para “fins eleitoreiros”. Essa é a opinião de Carlos Kawall, diretor da ASA Investments e ex-secretário do Tesouro Nacional. Para o economista, a participação do ministro Paulo Guedes (Economia), no movimento que inseriu na Proposta de Emenda à Constituição (PEC) dos Precatórios a possibilidade de alterar o prazo de indexação da inflação na regra fiscal para elevar as parcelas do Auxílio Brasil a R$ 400, mostra uma contradição no discurso de austeridade pregado por ele até então. “Até a semana passada, sentíamos um populismo mais envergonhado do governo, e agora foi para um populismo mais aberto, escancarado na medida que já se falou até em gastos extra teto”, diz em entrevista ao portal da Jovem Pan. A reação negativa do mercado, que elevou o dólar na máxima de seis meses e derrubou a Bolsa para a menor pontuação em quase um ano, deve reverberar nos próximos meses e impactar o crescimento do país em 2022. Diante das pressões que devem incidir sobre a inflação e na alta dos juros, a ASA revisou para baixo o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) do próximo ano de 1,5% para 0,4%. “Estamos no limite de ingressar em uma nova recessão em 2022″, afirma.

Na prática, a medida deixa nas mãos do governo R$ 83 bilhões a mais para gastar em 2022 – ano eleitoral. Para Kawall, esse movimento meses antes do pleito é uma “notícia muito ruim”. A ação foi feita à margem do defendido pela equipe econômica ao longo dos últimos meses de controle dos gastos. A aprovação da PEC com o aval de Guedes culminou com a saída de quatro secretários do Tesouro de uma única vez. “Ou eles foram vencidos, ou sequer consultados nessa articulação que o ministro já vinha tocando com o relator da PEC”, diz o economista. Segundo ele, o roteiro visto hoje se assemelha muito ao que levou a crise no governo da petista Dilma Rousseff. “Estamos nos aproximando dos piores momentos do governo Dilma, quando exatamente se rompeu com a âncora fiscal, foi demitido o ministro [da Fazenda] Joaquim Levy, e entramos numa brutal recessão no ano seguinte.” Confira abaixo os principais trechos da entrevista.

A mudança proposta pelo governo configura a quebra do teto de gastos? Sim, o que assistimos nos últimos dias, infelizmente, foi uma mudança de regime fiscal. Uma investida contra a nossa principal âncora fiscal, agora não mais em função de gastos ligados à pandemia, excepcionais que tinham de ser enfrentados em uma situação emergencial, e sim no contexto de você ampliar gastos com objetivo eleitoral. É sempre importante chamar a atenção para que nem eu nem meus colegas de mercado julgamos que o Bolsa Família ou o Auxílio Brasil é uma má alocação de recursos. A ampliação poderia ser acompanhada de medidas onde se reduzissem outras despesas, tirasse o foco dos programas sociais do governo onde se gasta muito e com pouco efeito no combate à pobreza. Poderia se mexer em emendas parlamentares. O fato de só estar se fazendo essa ampliação agora, em ano eleitoral, e em desrespeito ao teto, é uma notícia muito ruim.

Quais os efeitos dessa mudança na economia? No final, o que deve acontecer é menos crescimento econômico no ano que vem. Mudamos a previsão do PIB de 2022 para 0,4%, antes era 1,5%. Agora, julgamos que a Selic não vai mais a 9% no início do ano que vem, e sim a 10,5% ao ano, com alta já de 150 pontos na reunião [do Copom] da semana que vem, e uma outra da mesma magnitude na reunião de dezembro. Julgamos que a inflação deste ano, de 8,7%, vai para 9,2%, sobretudo por conta da pressão do câmbio. Vamos ter no final do ano um câmbio mais elevado, mais para R$ 5,50 a R$ 6, do que R$ 5 a R$ 5,50. Tínhamos até R$ 5,25 como previsão do dólar no fim do ano. Para o ano que vem, imaginamos que vamos ter um dólar na média em torno de R$ 5,70, mas podendo chegar a picos de R$ 6, e mesmo ultrapassar. Já estamos próximos disso, e a probabilidade de já bater R$ 6 este ano é relevante. Com isso, a inflação do ano que vem, mesmo com juro mais alto e a economia crescendo quase nada, deve ir a 4,2%, com viés de que isso poder ser até maior se o grau de desorganização que o governo está patrocinando for ampliado no trâmite da PEC no Congresso.

Ainda fazemos uma leitura de que o PIB do ano que vem pode ser um pouquinho positivo, porque há alguns vetores, como a safra agrícola, que se espera ser favorável, o movimento de ampliação de oferta de bens industriais, e também algum efeito da normalização dos serviços. Mas, se pudéssemos fazer uma abstração e pensar em 2022 sem eleição, seria muito mais fácil estar falando em um número mais coerente, em um PIB de 2%, 2,5%. E já estamos falando em um PIB praticamente zerado. Estamos no limite de ingressar em uma nova recessão em 2022. Com isso, o que é a principal bandeira desse esforço do governo, que é a questão social, a situação deles não vai melhorar num contexto que o desemprego não diminua, talvez até aumente, a inflação suba, e você tenha um ambiente de mais incerteza, dificultando os investimentos e tudo o mais. 

O que esse movimento muda para o ano que vem? Agora, o ambiente de muito daquilo que achávamos que ia acontecer no ano que vem, ou 2023, com mudanças no teto, incertezas, foi antecipado para 2021. O que isso vai causar em termos políticos, na eleição, se isso abre mais espaço para uma terceira via ou não, é uma pergunta que também estamos nos fazendo, mas é cedo ainda. O cenário vai continuar se deteriorando no curto prazo, particularmente frente à incerteza sobre o que vai acontecer com a PEC no Congresso. O ponto de partida abre R$ 83 bilhões no teto. Pode ser mais ou menos? Ninguém vai apostar em menos, o risco claro é na direção de fazer mais. É um momento grave, e na segunda-feira, o Focus vai ter uma mudança  grande em relação ao que foi na outra semana. Vamos ter um retrato muito fiel do que os economistas estão pensando após a ruptura do teto, a debandada da equipe econômica. Vai ter uma mudança provavelmente das mais abruptas que já vimos na história do Focus.

Há razões para mudanças no teto de gastos? É meramente uma questão de encontrar mais espaço para gastar. O governo, inclusive, e parlamentares envolvidos nessa maracutaia não falam mais em teto de gastos, falam em responsabilidade fiscal. Eles não têm mais a coragem de dizer que o teto será mantido. Tivemos de fazer isso [teto de gastos] por causa do caos que herdamos do governo Dilma. E, desde então, conseguimos juros mais baixos, conter a escalada da dívida pública. Essa melhora na trajetória da dívida percebida foi a senha para esse assalto que está se fazendo nas contas públicas. O que está havendo de fato é um assalto institucionalizado via emenda constitucional, é um desmonte do nosso arcabouço fiscal e assalto aos cofres públicos com fins eleitoreiros

Realmente caminhamos na direção da desorganização do arcabouço fiscal e isso vai gerar, por consequência, uma desorganização econômica. O presidente disse que o mercado vai acabar se dando mal. O problema não é o mercado, mas a economia real. Quando se observa o que está acontecendo ao longo dessa semana de forma muito intensa, que é a alta dos juros futuros, a queda da Bolsa e a valorização do dólar, isso nós utilizamos, com outras variáveis também, para aferir o nosso índice de condições financeiras. Quando se tem essa movimentação de preços no mercado, isso afeta a atividade econômica futura. E esse índice está em um nível tão contracionista que estamos nos aproximando dos piores momentos do governo Dilma, quando exatamente se rompeu com a âncora fiscal, foi demitido o ministro [da Fazenda] Joaquim Levy, e entramos numa brutal recessão no ano seguinte. Estamos revivendo de certa forma o mesmo tipo de problema que tivemos, que foi a ruptura do arcabouço fiscal, inclusive com pedaladas e tudo mais, depois a troca da equipe econômica, que ocorreu agora, não na figura do ministro, pelo menos não por enquanto, e ingressando em um momento de ampliação de gasto. Estamos caminhando nessa direção. O grau da piora depende do que vai acontecer no Congresso. Os sinais não são bons. Pode ser que o grau de desorganização seja maior ou pior, mas já com comprometimento grande do PIB do ano que vem. E é óbvio que, se formos por esse caminho, uma recessão em 2022 passaria a ser o cenário base.

O ministro tem condições de se manter no cargo? Foi uma surpresa a maneira como ele se colocou defendendo a ampliação do gasto, dizendo que não era populista, era popular, que a arrecadação subiu, então vamos gastar um pouquinho mais. Falando já na mudança do indexador, que, o que tudo já indica, já estava sendo costurada com o relator da PEC. Claramente, para mim, isso foi uma senha de que os secretários certamente eram contrários a esse tipo de solução, ou eles foram vencidos ou sequer consultados nessa articulação que o ministro já vinha tocando com o relator da PEC. Se a saída dele pode fazer com que o mercado sinta, depende de quem entrar. Se entrar alguém que represente claramente uma solução de fato populista, de gastar mais, talvez o mercado sinta mais por quem entrou do que por quem está saindo. A credibilidade do ministro ficou arranhada com os acontecimentos desta semana

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