Em dois meses, Brasil registra mais de 23,3 mil casos de assédio moral e sexual no ambiente de trabalho; confira relatos

  • Por Marina Ogawa/Jovem Pan
  • 04/04/2017 21h00
Freeimages Mulher sentada em frente ao computador

Em algum momento você se viu em uma situação constrangedora no ambiente de trabalho? Algum chefe já foi desrespeitoso ou algum colega já te assediou, por exemplo? Sim? Pois é, os casos de assédio moral e sexual dentro do ambiente de trabalho são mais comuns do que gostaríamos.

Prova disso são os números mais recentes registrados pelo Tribunal Superior do Trabalho, e obtidos pela Jovem Pan. Apenas nos meses de janeiro e fevereiro deste ano, as Varas do Trabalho de todo o território nacional receberam 22.574 novos casos que tratam do assédio moral, e 763 de assédio sexual. Entre eles estão presentes não apenas o desrespeito verbal, mas também o assédio que visa a obtenção de vantagens sexuais. 

Gaslighting, que é a violência emocional por meio da manipulação psicológica; e o Manterrupting, quando uma mulher não consegue terminar uma frase por ser constantemente interrompida por homens, também são recorrentes no ambiente de trabalho – e motivos suficientes para serem considerados casos de assédio moral.

O associado-sênior da área trabalhista do escritório de advocacia Trench Rossi Watanabe, Carlos Eduardo Morais, explica o que configura os assédios moral e sexual.

“O assédio sexual é previsto na legislação. É a chantagem ou intimidação por meio de constrangimento de colegas por ‘cantadas’, insinuações frequentes, com o objetivo de obter uma vantagem ou favorecimento sexual. Em resumo: toda prática dentro do ambiente de trabalho que intimide ou constranja o outro para obtenção de favorecimento sexual”, disse.

Já o assédio moral, segundo ele, são as “práticas reiteradas e desumanas que não primam pela ética no ambiente de trabalho. Expõem o assediado a situações vexatórias, humilhantes”. O assédio moral, por muitas vezes, desestabiliza emocionalmente a relação da vítima com a empresa, com o empregador e com o ambiente de trabalho.

Confira exemplos de assédio moral e sexual no ambiente de trabalho:

O número de casos é extenso e deve sim ser denunciado. Abaixo, alguns relatos de assédio moral e sexual revelados para a reportagem. Confira:

“Na hora eu não falei nada” – Carlos

“Quando eu trabalhei na redação de um grande jornal, minha chefe deixava para avisar os plantões de final de semana em cima da hora. Com todos era assim. Comigo o problema foi mais grave. Quando comecei a fazer pós-graduação, avisei que precisaria eventualmente trocar plantões por causa das aulas. Muito solícita, disse que tudo bem, e me orientou a trocar diretamente com os colegas. Ao longo do ano, fiz quatro trocas, no máximo. Mas chegou um dia em que ela me ligou na redação e disse que naquele final de semana eu trabalharia. Eu discordei. Foi o estopim para que ela gritasse comigo e me acusasse de estar levando vantagem em cima dos colegas e que eu estava trabalhando menos do que eles. Um colega que queria trocar datas comigo ouviu dela: ‘você pode trocar com qualquer um, menos com o Carlos’. Felizmente, não trabalho mais lá. Ao sair, o RH pediu que eu preenchesse uma espécie de pesquisa de satisfação a respeito da empresa. Usei o papel como desabafo, relatando esse e outros comportamentos nocivos, que não tive coragem no momento em que ocorreram.”.

“Como você peita seu chefe? Alguém que tem a possibilidade de fazer da sua vida um inferno? Reclamei quando não tinha mais chances de represália, mas não sei se deu resultado”

“Pediu para ver minha barriga” – Angela

“Quando eu trabalhava em uma consultoria de gestão de saúde, era a única mulher entre sete homens. O meu chefe mandou eu parar de ajudar os meninos quando estávamos na mudança de sala e me mandou ir ler a [revista] Marie Claire. Também teve uma vez, em um evento, em que eu e um outro colega estávamos revezando para tirar foto. Na minha vez, o meu chefe tirou a máquina da minha mão e disse que eu não poderia. Perguntei a razão e ele disse: ‘porque você é menina’”, contou.

Em um outro emprego, Angela voltou a ser assediada. Desta vez sexualmente, e pelo motorista do ônibus fretado. “Ele uma vez disse que eu parecia bem mais jovem do que realmente sou e pediu para ver como era a minha barriga”.

“Ele ficou segurando a minha batata da perna enquanto eu estava esperando para descer no meu ponto e disse que tinha vontade de me morder (…) Eu fiquei quieta, não falei nada”

“Ele apertou os meus seios” – Rosana

“Eu precisava levar algumas minutas contratuais para validação do advogado-chefe, que tinha uma sala ao lado da minha. No momento, ele estava almoçando, e a secretária não estava. Fui atendida pelo advogado assistente, que educadamente pediu para que eu fosse na sala do advogado-chefe. Eu entrei na sala, como sempre fazia, passei todas as informações que deveriam ser replicadas ao advogado-chefe, antes de sair falei ‘boa tarde’. Naquele momento, aquele senhor que me conhecia há anos e sempre foi educado até então, apertou os meus seios, do nada. Fiquei sem reação. Saí da sala correndo, entrei no escritório aos prantos e me tranquei no banheiro, fiquei sem reação, sentindo raiva, ao mesmo tempo medo”.

“Senti vergonha e medo de ninguém acreditar em mim. Imagina, o tal senhor era devoto, daqueles que no Natal pedia contribuição para a igreja e levava a foto dos netos na carteira. E eu? Era recém-formada, jovem, solteira, vivia na balada, em quem iriam acreditar?”

“Era chamado de ‘gostoso'” – Marcelo

“Eu sou educador físico e tinha uma coordenadora que, no início, começou com brincadeiras dizendo que eu era tímido, que tinha que me soltar mais. Então ela começou a falar que eu era bonito, bom profissional. Até aí tudo bem. O problema começou quando ela começou a passar a mão no meu corpo. Ela chegou a apertar meus glúteos. Fiquei constrangido. Ela sempre fazia quando estávamos só nós. Eu tentei levar numa boa, mas sempre que ela me via falava que eu era ‘gostoso’, dizia que eu tinha uma ‘banda legal’ e que queria ver como seria a parte da frente”.

“Eu comentava com colegas de trabalho, mas não acreditavam, porque ela era casada. Os toques continuaram e ela acabou tocando nas minhas partes íntimas. Conversei com o dono da academia em que trabalhava e ele também não acreditou. Ela dizia que queria conferir se eu tinha treinado”

“A equipe em depressão” – Fabiana

“Sofri assédio moral por dois chefes diferentes dentro de uma instituição financeira. Isso durou três anos e meio. O primeiro praticava assédio moral contra a equipe inteira, 90% composta por mulheres. Ele expunha demais, xingava, falava palavrão, chamava a pessoa de ‘burra’, de ‘limitada’. Ele solicitava que as moças que a acompanhassem em reuniões usassem saias bem curtas, decotes provocantes para que o projeto dele fosse aprovado. Eu e outra moça, que era casada, fomos em reunião com ele. Só tinha homens e nós duas. Em certo momento ele falou que era ele quem fazia contratação. Ele disse ‘sou eu que faço a contratação, mas estou meio frustrado, porque achei que tinha contratado coelhinhas da Playboy, mas substituíram orelhinha de coelhinha por de outro bicho’, querendo dizer que éramos burras. A outra moça saiu chorando e não voltou para a reunião (…) Toda a equipe tomava remédio, passava por terapia, estava em depressão. Todo mundo tinha medo dele, porque sabia que ele ia nos receber gritando. Nada para ele estava bom. Muitas pessoas pediam afastamento. Eu várias vezes ia embora chorando para casa”.

 “Eu nunca cheguei até o RH, sabia que existia a denúncia para fazer, mas era algo complicado, porque você tinha que acionar testemunhas. Eles [empresa e setor de RH] acabavam expondo o colaborador. Quando você fazia denúncia, tinha que ficar frente a frente com o seu chefe”

“Procurei outro emprego” – Denise

“O chefe do meu chefe queria que eu cobrisse as férias da secretária dele. Mas eu não desempenhava aquelas funções e então perguntei o que eu faria. Ele disse, em tom malicioso, que arranjaria algo para eu fazer. Eu pedi para o meu chefe direto que não me deixasse trabalhar como secretária. Meu chefe, no entanto, disse que não poderia fazer nada, já que eram ordens superiores. Eu me recusei e no dia seguinte encontrei outro emprego”.

“Isso foi há 30 anos. Naquela época, as mulheres não tinham a voz que têm hoje. Minha saída foi ir procurar outro emprego”

“RH disse que ‘acontece'” – Camila

“Eu tive uma reunião e, quando sentei na cadeira, um gerente colocou a mão na minha perna. A princípio eu não conseguia acreditar. Achei que ele estava distraído. Eu tirei a mão dele, e ele riu, na maior hipocrisia. Eu não podia brigar porque estava em uma reunião. Contei para o RH da empresa, que não deu a mínima. O RH falou que essas coisas acontecem. Em uma outra situação, eu e um diretor entramos na sala de reunião e estava muito frio por conta do ar condicionado. Eu comentei sobre a temperatura e ele me abraçou e falou: ‘eu te esquento’”.

“Eu fiquei sem reação. O RH disse, neste segundo caso, que o diretor era brincalhão. Ninguém acreditou, acharam engraçado, normal. Nem minha gerente acreditou”

*Os nomes foram modificados para preservar a imagem e privacidade das vítimas.

Brincadeira X Assédio

Mas e como diferenciar uma “brincadeira” de um assédio? Qual o limite? Segundo o advogado especialista na área trabalhista, o limite é tênue. “Abordagem aos colegas [ou subordinados], no limite da normalidade, que recebe um ‘não’ como resposta deve ser cessado. Paquera ou flerte, quando correspondidos, não podem ser considerados assédios sexuais. Atos isolados como olhar, dar indiretas, se foram brincadeiras e houve reciprocidade, não são considerados assédios também. No entanto, se a medida se prolonga no tempo sem reciprocidade é assédio”, assegura.

Medo de retaliação

Apesar de recorrente, o número de casos que são denunciados, seja para o departamento de recursos humanos da empresa ou diretamente para uma Vara do Trabalho, são pequenos. Isso acontece porque muitos funcionários de empresas têm medo de represálias como demissões, “ficha suja” e rebaixamento de cargos.

Carlos Eduardo Morais ressalta que as pessoas não devem ter medo de realizar a denúncia, e que hoje, há mais coragem por parte dos assediados em procurar seus direitos.

As denúncias, entretanto, devem ser analisadas caso a caso. Se a empresa adota práticas preventivas, abre-se um canal de conversação. “O que a gente costuma orientar é dar visibilidade para a situação, porque isso desestimula a parte contrária de continuar assediando”, diz o advogado.

Quero denunciar meu assediador, o que faço?

Primeiro é preciso juntar provas que demonstrem que o assédio de fato ocorreu. Nem sempre é preciso levar testemunhas que deponham a seu favor.

Registros de e-mails, conversas, eventuais bilhetes ou até mesmo presentes entregues pelo assediador são provas contundentes de assédio. “Não precisa de pessoas que tenham presenciado, mas elementos que podem substituir ou reforçar eventuais testemunhas. Qualquer tipo de prova, senão é apenas uma denúncia vazia”, aconselha Carlos Eduardo Morais.

Denunciei, e agora?

Caso você tenha denunciado o assediador – seja um superior ou colega de trabalho – a medida esperada pelo departamento de RH da empresa é o afastamento das duas partes, de modo que elas não tenham contato direto uma com a outra e se evite assim qualquer tipo de retaliação ou novo caso de assédio.

“Na denúncia de assédio, a retaliação é a primeira preocupação. O assediador tem que ser limitado de qualquer poder de mando e gestão sobre o assediado para que ele não sofra retaliação”, alerta o advogado da área trabalhista da Trench Rossi Watanabe.

Consequências para o assediador e empresa

Ele pode sofrer advertência, suspensão ou até mesmo uma demissão por justa causa. Em alguns casos há a possibilidade de ele ser demitido sem justa causa.

Na Justiça do Trabalho, caso ocorra condenação do assediador, a empresa é obrigada a pagar indenização por danos morais, e não quem cometeu o assédio.

Em caso de acordo com a empresa, o assediado pode pedir o ressarcimento de prejuízos em uma indenização ajustada pelas partes.

Caso o assediado denuncie e seja demitido posteriormente, também cabe indenização. “Demonstrado em reclamação trabalhista que a dispensa foi arbitrária e motivada por denúncia legítima, a pessoa pode ser ressarcida dos prejuízos causados”, garante Carlos Eduardo Morais.

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