Massacre de Charlie Hebdo conduzirá a França a uma catarse duradoura?
Enrique Rubio.
Paris, 12 jan (EFE).- Os ataques terroristas da semana passada atingiram as entranhas da França, mas ao tempo permitiram aos franceses se reencontrarem, pelo menos por alguns dias, com os valores que nortearam a fundação de seu país, em uma espécie de catarse de futuro incerto.
A gigantesca resposta da população do domingo serviu, mais do que para condenar o terrorismo, como fator galvanizador de uma sociedade ferida, imersa em debates bizantinos sobre sua identidade e deprimida por uma situação econômica inquietante.
O lema “Je suis Charlie” é antes de tudo a reivindicação da liberdade de expressão, um dos pilares sobre os quais a sociedade francesa foi criada.
Enquanto alguns observadores apontam o paradoxo de milhões de pessoas saírem às ruas para defender uma revista que definhava pela falta de leitores, os franceses lançaram mão da herança de Voltaire para lembrar que podem não estar de acordo com a revista, mas defenderão seu direito de dizer o que quiser.
Esse retorno aos fundamentos da República gerou certo sentimento de comunhão que muitos se perguntam por quanto tempo se manterá.
O líder centrista e ex-candidato presidencial François Bayrou, por exemplo, sugeriu a formação de um governo de união nacional, que não parece ter muitas chances de prosperar.
O diretor de opinião do instituto de pesquisa TNS Sofres, Emmanuel Riviere, lembrou hoje na emissora “France Info” que, passada a emoção e os pedidos de unidade, agora é o momento de encontrar soluções e é aqui que surgirão os atritos.
Para ele há dois campos com potencial para semear divergências desde o primeiro minuto: a segurança, com medidas preventivas como o isolamento de jihadistas nas prisões, e a questão migratória.
Em relação ao primeiro debate, já surgem vozes na França que reivindicam a aprovação de uma lei semelhante ao chamado Patriot Act, criado nos Estados Unidos após os atentados do 11 de setembro de 2001, que ampliaram para um nível sem precedentes o alcance da espionagem e a limitação dos direitos dos detidos.
A ex-ministra conservadora Valérie Pécresse se declarou hoje favorável a uma legislação “à francesa” inspirada nas medidas excepcionais ainda vigentes nos EUA, que permitiriam “uma resposta firme e global”.
Enquanto isso a questão da imigração, como afirmou o analista Riviere, levará o debate público “ao terreno onde (a líder ultradireitista) Marine le Pen se sente mais confortável”.
O nome da presidente da Frente Nacional evoca exatamente as diferenças surgidas nestes dias que romperam o retrato idílico da união nacional.
Le Pen apostou alto ao se descolar da grande manifestação de Paris, alegando ter se sentido “excluída” pelos organizadores.
Sua manobra seguramente atrairá os votos de muitos desencantados com a classe política parisiense, mas poderia afastá-la da vocação majoritária que precisará para captar votos suficientes para chegar à presidência da República nas eleições de 2017.
Também não demorou a se colocar na controvérsia migratória o líder conservador Nicolas Sarkozy, ciente de que seu partido não deixa de perder votos pela direita que desembocam nos hostes populistas de Le Pen.
“Não direi que a imigração e o que vivemos estão vinculados, mas ela complica a situação porque, quando a integração não funciona, temos um problema para conduzir certo número de indivíduos em nosso território nacional”, declarou Sarkozy à emissora “RTL”.
Apesar de tudo, lembrou que não deseja “passar da união nacional à polêmica nacional”, e destacou que o presidente, François Hollande, “fez o que tinha que fazer”.
Levados pela emoção, responsáveis políticos e meios de comunicação como o Le Monde qualificaram o massacre do “Charlie Hebdo” como “o 11 de setembro francês”.
Quando os sentimentos serenarem, a França enfrentará o duplo desafio de evitar uma tragédia semelhante e de buscar inspiração na luta pela liberdade de expressão que os desenhistas do Charlie Hebdo desfraldaram. EFE
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