Aproximação do Uruguai com a China é ‘bomba atômica’ para o Mercosul

Argentina, Brasil e Paraguai temem que acordo bilateral entre os países possa rachar o bloco; especialistas ouvidos pela Jovem Pan dizem que avanços nas negociações representam um risco

  • Por Sarah Américo
  • 29/01/2023 16h30 - Atualizado em 29/01/2023 17h54
  • BlueSky
Dante Fernandez / AFP presidente do uruguai e Lula O presidente do Uruguai, Luis Lacalle Pou (E), ri ao lado do presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, na residência presidencial em Montevidéu, em 25 de janeiro de 2023, durante a visita de Lula ao Uruguai

O Uruguai não escondeu que vai continuar avançando nas negociações bilaterais com a China. Durante a visita de Luís Inácio Lula da Silva (PT) ao país, o presidente uruguaio, Luis Lacalle Pou, declarou que não tinha problemas em informar o Brasil e Argentina sobre o que está negociando com os chineses e defendeu a necessidade de fazer esse acordo para o desenvolvimento do seu país. Um dia antes, durante a participação na 7ª cúpula da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), ele já havia proposto o impulsionamento da criação de uma área de livre-comércio regional. “Não seria o momento de tornar essas relações mais sinceras e que se impulsione, a partir da Celac, uma área de livre-comércio do México até o sul da América do Sul? Não podemos avançar nesse sentido?”, questionou. “Temos a possibilidade de fazer comércio livremente. Muitas de nossas economias são complementares, e tenho certeza de que poderíamos avançar”, argumentou Lacalle Pou no momento em que seu país está sob pressão no Mercosul após a decisão de negociar um tratado de livre-comércio (TLC) com a China.

A negociação avança após a realização de um estudo de viabilidade, deixando a situação tensa para Argentina, Brasil e Paraguai – outros integrantes do Mercosul -, que chegaram a ameaçar Montevidéu com medidas legais e comerciais. O Uruguai também se inscreveu para aderir ao Acordo Transpacífico. O presidente uruguaio, no entanto, assegura que não se opõe à participação de outros membros do Mercosul no acordo com o país asiático e destaca que “o Mercosul é a quinta região mais protecionista do mundo”. Ele também reforçou que seu país não é “divisionista”. “Nunca dissemos ‘vamos abandonar o Mercosul’”, insistiu. A aproximação dos uruguaios com os chineses é vista com receio por Brasil, Argentina e Paraguai porque temem que possa representar um problema para o bloco. Amâncio Jorge de Oliveira, especialista em ciência política pela Universidade de São Paulo (USP), fala que essa aproximação pode trazer tremendas consequências e impactos e ser um “bomba atômica”. “O Mercosul tem regras de acordos comerciais. Se o relacionamento bilateral entre os países acontecer, haveria um nível de competitividade do produto chinês em relação ao Uruguai com proporção a tomar os outros países da América do Sul via essa porta de entrada, também bastante contundente, e seria para o Mercosul uma coisa bastante complexa”.

Luiz Fernando Paulillo, doutor em economia e diretor do Centro de Ciências Exatas e de Tecnologia da Universidade Federal de São Carlos (UFScar), afirmou que o que Uruguai está fazendo com a China preocupa os outros países, porque essa sinalização é uma ameaça à constituição do Mercosul. “Se o acordo bilateral acontece e avança, isso enfraquece o bloco e representa uma real ameaça”. Alberto Pfeifer, coordenador geral do DIS, grupo de análise de estratégia internacional da USP, explica que o “Uruguai tem um setor industrial limitado e pequeno que se baseia na importação, que vem principalmente de países do Mercosul, o que, de alguma maneira, vincula a economia dele ao Brasil”, acrescentando que a proximidade do Uruguai com a China, “sempre será um incomodo para o Brasil, porque ele verá países tão próximos a ele penderem para o lado da lógica produtiva e de consumo chinês”. O especialista ainda relembra que essa proximidade infringe umas cláusulas do Mercosul, porque se ele abrir seu setor importador para outro país fora do bloco, isso precisa ser acordado, mas fere a solidez do Mercosul.

“O Brasil quer preservar o tratado fundador do bloco e tarifa externa comum”, afirmou Celso Amorim, assessor especial do presidente Luiz Inácio Lula da Silva para assuntos internacionais. Em uma coletiva, ele foi enfático em sua objeção. “Achamos que o Uruguai é exemplo de civilidade em muitos aspectos dentro da América Latina, que em muitas coisas eles estão muito avançados. Mas achamos que o Mercosul precisa ser preservado”, afirmou o assessor. “Dentro da ideia de preservação está a tarifa externa comum. Isso não é uma exigência do Brasil ou da Argentina, é o artigo 1º do Tratado de Assunção”, afirmou Amorim. O artigo citado faz parte do texto constitutivo do Mercosul e garante “o estabelecimento de uma tarifa externa comum e a adoção de uma política comercial comum em relação a terceiros Estados ou agrupamentos de Estados e a coordenação de posições em foros econômico-comerciais regionais e internacionais”.

O bloco sul-americano conta com uma taxa externa comum com múltiplas “perfurações” ou exceções, que foi reduzida em 2021 mediante um acordo entre Argentina e Brasil. O artigo também contempla a eliminação de “restrições não tarifárias à circulação de mercadorias”, um ponto que o Uruguai questiona não ser cumprido em sua totalidade pelo bloco. “Queremos preservar o Tratado de Assunção da forma como está escrito, mas reconhecemos que os países menores precisam de algum apoio, de alguma forma”, disse Amorim, que afirmou que os Estados-membros podem “comprar produtos industrializados do Uruguai ou incentivar que o país participe da cadeia produtiva” do setor automotivo, entre outras medidas. Sua declaração foi feita um dia antes do encontro entre Lula e Lacalle Pou. O líder brasileiro, por sua vez, disse entender o desejo dos uruguaios e falou sobre a possibilidade de fazer acordo com a China, porém, enfatizou que antes é necessário focar na União Europeia. “É urgente e necessário que o Mercosul faça o acordo com a União Europeia. Eu ainda estava no primeiro mandato, em 2003, quando já se discutia esse acordo. Vamos intensificar as discussões com a UE. Vamos firmar esse acordo para que a gente possa discutir apenas um possível acordo entre China e Mercosul. Eu acho que é possível”, disse Lula após se reunir com Lacalle Pou em Montevidéu.

O líder brasileiro ainda expressou o desejo de fortalecer o bloco. “Concordamos em discutir reformas no Mercosul. O que precisamos fazer para modernizar o Mercosul? Queremos sentar à mesa primeiramente com nossos técnicos, depois com nossos ministros, e finalmente com os presidentes para que a gente possa renovar aquilo que for necessário renovar”, disse Lula em resposta ao presidente do Uruguai, que falou sobre a necessidade de ter um bloco mais “moderno, flexível e aberto ao mundo”. Lacalle Pou expressou sua satisfação com o apoio do Brasil ao “aprimoramento do Mercosul”. O Uruguai pede há anos uma maior flexibilidade ao Mercosul, assim como avanços nas negociações comerciais com a UE, um pedido que Lula considerou “mais do que justo”. “É justo querer produzir e vender mais. Por isso, é importante se abrir o máximo possível para o mundo dos negócios”, afirmou o presidente do Brasil.

  • BlueSky

Comentários

Conteúdo para assinantes. Assine JP Premium.