Com sequelas neurológicas, Covid-19 traz risco de demência semelhante ao Alzheimer

Estudo aponta que infecção pelo coronavírus pode causar neuroinflamações e levar a quadros progressivos degenerativos; para especialistas, essa é uma das piores sequelas da doença

  • Por Caroline Hardt
  • 17/07/2021 08h00
DEIVIDI CORREA/ESTADÃO CONTEÚDO - 09/04/2021 Profissionais cuidam de paciente infectado pelo coronavírus Pesquisa também aponta que indivíduos com propensão ao Alzheimer têm maior risco de infecção pelo coronavírus

Mais de um ano e meio após o primeiro registro da Covid-19 na China, cientistas avançam nas descobertas sobre os efeitos da infecção pelo coronavírus, como a maior propensão a episódios de trombose, acidente vascular cerebral (AVC), insuficiência renal e cardíaca e fibrose pulmonar. Agora, uma nova preocupação se une ao rol de possíveis sequelas: os efeitos neurológicos da doença, com o desenvolvimento de demências, especialmente em pacientes graves. Estudo do centro médico acadêmico Cleveland Clinic, nos Estados Unidos, publicado na revista médica “Alzheimer ‘s Research & Therapy”, aponta que o Sars-CoV-2 é capaz de provocar neuroinflamações semelhantes às causadas pelo Alzheimer. Para chegar a essa conclusão, a pesquisa avaliou geneticamente indivíduos que possuem a doença e não estavam infectados pelo coronavírus, bem como pessoas que não têm a demência e testaram positivo para a Covid-19. A partir disso, foi possível identificar a proximidade entre os genes/proteínas do coronavírus e aqueles associados a várias doenças neurológicas, assim como estabelecer as semelhanças entre ambas doenças. “Essas descobertas indicam que o vírus pode impactar vários genes ou vias envolvidas na neuroinflamação e lesão microvascular cerebral, o que pode levar ao comprometimento cognitivo semelhante à doença de Alzheimer”, afirmou Feixiong Cheng, autor principal do estudo e membro do Instituto de Medicina Genômica da Clínica Cleveland.

Além de evidenciar a relação entre a proximidade dos genes/proteínas do coronavírus e as doenças neurológicas, o estudo da Cleveland Clinic mostra ainda que proteínas presentes no Sars-CoV-2 permitem que o vírus ultrapasse a barreira hematoencefálica (estrutura que bloqueia a entrada substâncias do sangue para o sistema nervoso central), propiciando o surgimento das complicações neurológicas. No entanto, o neurocirurgião Márcio Rassi pontua que diversos fatores também influenciam no desenvolvimento de um quadro demencial, não sendo a Covid-19 um fator isolado para desencadeá-lo. “Paciente de mais idade, longa permanência em UTI, uso de sedativos porque ficou entubado, ventilação mecânica, tudo isso, associado ao risco causado pela Covid-19, contribui para que ele desenvolva um distúrbio cognitivo ou neuropsiquiátrico pós-infecção. E o contrário também é verdadeiro: pacientes com demência têm maior risco de desenvolver quadros mais graves de Covid”, destaca Rassi, que é secretário do departamento da base de crânio da Sociedade Brasileira de Neurologia.

O neurocirurgião pontua que, além de causar uma demência semelhante ao Alzheimer, a Covid-19 também pode levar ao surgimento de outros efeitos neurológicos, como a perda de olfato — uma das sequelas mais comuns —, confusão mental, dor de cabeça persistente e perda de memória. Porém, é possível dizer que a demência está entre os piores efeitos da doença, já que é irreversível. “Demência é uma doença progressiva degenerativa que, a longo prazo, vai diminuindo a função cognitiva da pessoa. Ou seja, a memória, o raciocínio e até a linguagem. A pessoa vai deteriorando, mas a gente não consegue curar. Conseguimos segurar a progressão de alguns sintomas com medicamentos, mas não reverter”, pontua o médico, destacando que um quadro demencial como do Alzheimer impacta outras pessoas além do paciente. “Como a doença é progressiva, a pessoa precisa cada vez mais dos outros. No começo, de ajuda para comida, uma compra… Depois, para se trocar, ir ao banheiro, para cuidados básicos mesmo. Isso vai piorando e exigindo de todos que estão ao redor. É uma doença que acomete um número grande de pessoas. Então, a demência acaba sendo uma das piores sequelas da Covid-19”, completa.

Márcio Rassi esclarece, no entanto, que é preciso saber diferenciar quais sintomas podem representar o início de uma doença degenerativa e quais são causados por outros fatores, como o próprio contexto pandêmico. “Muita gente chega no consultório e fala: ‘Estou muito esquecida’. Mas o esquecimento é ir na cozinha e não lembrar o que ia fazer. Isso é normal, é sobrecarga. Esquecer o nome de algum conhecido que não vê há muito tempo é normal, mas encontrar um parente que você tem convívio e não lembrar o nome é uma coisa que chama atenção. Pensando no Alzheimer, a alteração inicial é na memória recente, por isso pessoas que têm a doença acham que conhecidos já falecidos estão vivos, mas não reconhecem os netos. A memória recente está prejudicada, mas a antiga está mantida. Isso é uma característica da doença de Alzheimer. Se você observar qualquer tipo de alteração comportamental incomum pode ser um sinal de alerta.”

Outros estudos

Além de demonstrar que a Covid-19 pode estar relacionada ao surgimento de demências, a pesquisa da Cleveland Clinic também apontou que indivíduos com o alelo de risco AD APOE E4/E4, traço genético que determina a propensão ao Alzheimer, possuem menor defesa antiviral, o que sugere maior risco de infecção pelo coronavírus. Uma análise de dados de 236.379 pacientes, publicada na revista científica “The Lancet Psychiatry”, também revelou que 1 a cada 3 infectados pela Covid-19 receberam um diagnóstico de efeito neurológico seis meses depois da infecção. Entre as incidências apresentadas estão casos de hemorragia intracraniana, Parkinson, transtorno de ansiedade e transtorno psicótico, assim como quadros de demência. Outros estudos mencionados pelos pesquisadores apontam que os casos de sequelas neurológicas não se limitam ao Sars-CoV-2. De acordo com o estudo, 20% das pessoas que tiveram a Síndrome Respiratória Aguda Grave (Sars-CoV-1), em 2002, e a Síndrome Respiratória do Oriente Médio (MERS), em 2012, apresentaram comprometimento contínuo da memória, com efeitos neurocognitivos. 

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