Estupros de guerra: entenda por que mulheres e crianças sofrem dois tipos de violência

Ucrânia acusa soldados russos de barbaridades durante o conflito; para especialistas, a violação é uma forma de diminuir o inimigo, impor o terror e se sentir ‘livre’ para fazer o que quiser

  • Por Sarah Américo
  • 20/03/2022 10h00
Roman Pilpey/EFE/EPA - 09/03/2022 Mulheres ucranianas cozinham dentro de uma barraca em um acampamento improvisado ao lado de um posto de controle, em Kiev Mulheres ucranianas cozinham dentro de uma barraca em um acampamento improvisado, ao lado de um posto de controle em Kiev

Uma guerra vai muito além de bombardeios e ataques. Por trás desses acontecimentos, ocorrem outras barbaridades que, muitas vezes, acabam sendo neutralizadas ou até mesmo ignoradas, como estupro de mulheres e crianças, preconceitos e racismo. O conflito entre Rússia e Ucrânia, que acontece desde o dia 24 de fevereiro, já teve relatos de violações e racismo. No dia 4 de março, o ministro das relações exteriores da Ucrânia, Dmytro Kuleba, fez a seguinte declaração: “Quando as bombas caem em nossas cidades, quando soldados estupram mulheres em cidades ocupadas — e temos inúmeros casos de estupros, infelizmente —, é difícil falar em aplicação de leis internacionais”. Apesar de não ter evidências sobre o ocorrido, ele disse que a “única ferramenta civilizada disponível” seriam os acordos internacionais para eventualmente levar à Justiça quem está fazendo essa guerra. Outro caso que tem ocorrido desde o dia da invasão, relatado por centenas de pessoas, é a discriminação com pessoas negras, que têm sido impossibilitadas de embarcar em trens para deixar o país ou empurradas dos vagões, como se não fossem uma prioridade. Esse cenário não é novo, pelo contrário, sempre fez parte da humanidade e se intensificou durante a guerra.

A antropóloga Francirosy Campos Barbosa explica que essa é uma forma de fragilizar o adversário por meio da humilhação. “Você atinge psicologicamente um grupo social e deixa sequelas. Essa é a forma das pessoas temerem os soldados, a política de guerra e até mesmo os países”. O antropólogo com PhD em neurociência Fabiano de Abreu Agrela afirma que essa situação é uma questão de domínio, “uma forma de ser mais do que o outro e torná-lo inferior”. Isso faz com que soldados internalizem o pensamento de que podem fazer o que quiserem. Apesar de existirem leis de guerra e de determinadas ações serem consideradas criminosas, nem todos as respeitam. Como diz Agrela, um conflito “vira terra sem lei, ou seja, todos passam a ser animais irracionais e, como não tem regras, eles cometem esse atos”.

Durante os conflitos, mulheres e crianças viram as pessoas mais vulneráveis e acabam sofrendo com a brutalidade dos soldados invasores. Francirosy, que também é pesquisadora no departamento de Psicologia Social da Universidade de São Paulo, explica que, nesses momentos, mulheres e crianças sofrem dois tipos de violência: “A de sair da sua casa, abrigo e família e os ataques que acontecem durante o trânsito e locomoção”. Segundo ela, “não basta ocupar, também é preciso dominar o corpo feminino” para provocar o terror no outro e ser temido. Em decorrência desses estupros em tempos de guerra, Agrela conta que muitas pessoas hoje “não sabem a origem dos seus pais e avós” porque descendem de “filhos sem pais” de conflitos passados, como a Segunda Guerra Mundial. Os alemães estimam que mais de 100 mil mulheres foram estupradas apenas em Berlim após a tomada da cidade pelo exército soviético. Esse é um dos motivos pelos quais a Europa e os Estado Unidos desenvolveram uma cultura russofóbica.

Crimes como esse se repetem com o decorrer dos anos, em guerras como na Síria, no Afeganistão, no Iraque, no Iêmen, em Ruanda (onde de 250 a 500 mil mulheres foram violentadas por milícias, de acordo com estimativa da ONU) e vários outros confrontos. “Não conseguimos mensurar o tamanho da violência, é algo que acontece em toda a guerra”, declara Francirosy. Apesar de a violência sexual ser considerada um crime contra a humanidade pela convenção internacional do estatuto de Roma e de, em 2016, o tribunal ter identificado esses atos como crime de guerra, não se vê punições para os praticantes. A antropóloga afirma que o que está sendo feito é uma “normalização da violência contra a mulher”. Um julgamento se torna muito complicado porque “as leis internacionais não protegem o suficiente essas pessoas”. Além disso, em momento como esses, muitas se submetem a qualquer coisa em troca de alimentos para os filhos. Para ela, uma forma de tentar evitar que isso aconteça seria uma política de reeducação do humano “até mesmo da sociedade”, e que as pessoas olhassem mais para o aspecto humanitário e de proteção para essas mulheres. “Acho que as pessoas que estão trabalhando nesse conflito precisam ter um olhar de acolhimento em relação às mulheres.”

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