Estupros de guerra: entenda por que mulheres e crianças sofrem dois tipos de violência
Ucrânia acusa soldados russos de barbaridades durante o conflito; para especialistas, a violação é uma forma de diminuir o inimigo, impor o terror e se sentir ‘livre’ para fazer o que quiser
Uma guerra vai muito além de bombardeios e ataques. Por trás desses acontecimentos, ocorrem outras barbaridades que, muitas vezes, acabam sendo neutralizadas ou até mesmo ignoradas, como estupro de mulheres e crianças, preconceitos e racismo. O conflito entre Rússia e Ucrânia, que acontece desde o dia 24 de fevereiro, já teve relatos de violações e racismo. No dia 4 de março, o ministro das relações exteriores da Ucrânia, Dmytro Kuleba, fez a seguinte declaração: “Quando as bombas caem em nossas cidades, quando soldados estupram mulheres em cidades ocupadas — e temos inúmeros casos de estupros, infelizmente —, é difícil falar em aplicação de leis internacionais”. Apesar de não ter evidências sobre o ocorrido, ele disse que a “única ferramenta civilizada disponível” seriam os acordos internacionais para eventualmente levar à Justiça quem está fazendo essa guerra. Outro caso que tem ocorrido desde o dia da invasão, relatado por centenas de pessoas, é a discriminação com pessoas negras, que têm sido impossibilitadas de embarcar em trens para deixar o país ou empurradas dos vagões, como se não fossem uma prioridade. Esse cenário não é novo, pelo contrário, sempre fez parte da humanidade e se intensificou durante a guerra.
A antropóloga Francirosy Campos Barbosa explica que essa é uma forma de fragilizar o adversário por meio da humilhação. “Você atinge psicologicamente um grupo social e deixa sequelas. Essa é a forma das pessoas temerem os soldados, a política de guerra e até mesmo os países”. O antropólogo com PhD em neurociência Fabiano de Abreu Agrela afirma que essa situação é uma questão de domínio, “uma forma de ser mais do que o outro e torná-lo inferior”. Isso faz com que soldados internalizem o pensamento de que podem fazer o que quiserem. Apesar de existirem leis de guerra e de determinadas ações serem consideradas criminosas, nem todos as respeitam. Como diz Agrela, um conflito “vira terra sem lei, ou seja, todos passam a ser animais irracionais e, como não tem regras, eles cometem esse atos”.
Durante os conflitos, mulheres e crianças viram as pessoas mais vulneráveis e acabam sofrendo com a brutalidade dos soldados invasores. Francirosy, que também é pesquisadora no departamento de Psicologia Social da Universidade de São Paulo, explica que, nesses momentos, mulheres e crianças sofrem dois tipos de violência: “A de sair da sua casa, abrigo e família e os ataques que acontecem durante o trânsito e locomoção”. Segundo ela, “não basta ocupar, também é preciso dominar o corpo feminino” para provocar o terror no outro e ser temido. Em decorrência desses estupros em tempos de guerra, Agrela conta que muitas pessoas hoje “não sabem a origem dos seus pais e avós” porque descendem de “filhos sem pais” de conflitos passados, como a Segunda Guerra Mundial. Os alemães estimam que mais de 100 mil mulheres foram estupradas apenas em Berlim após a tomada da cidade pelo exército soviético. Esse é um dos motivos pelos quais a Europa e os Estado Unidos desenvolveram uma cultura russofóbica.
Crimes como esse se repetem com o decorrer dos anos, em guerras como na Síria, no Afeganistão, no Iraque, no Iêmen, em Ruanda (onde de 250 a 500 mil mulheres foram violentadas por milícias, de acordo com estimativa da ONU) e vários outros confrontos. “Não conseguimos mensurar o tamanho da violência, é algo que acontece em toda a guerra”, declara Francirosy. Apesar de a violência sexual ser considerada um crime contra a humanidade pela convenção internacional do estatuto de Roma e de, em 2016, o tribunal ter identificado esses atos como crime de guerra, não se vê punições para os praticantes. A antropóloga afirma que o que está sendo feito é uma “normalização da violência contra a mulher”. Um julgamento se torna muito complicado porque “as leis internacionais não protegem o suficiente essas pessoas”. Além disso, em momento como esses, muitas se submetem a qualquer coisa em troca de alimentos para os filhos. Para ela, uma forma de tentar evitar que isso aconteça seria uma política de reeducação do humano “até mesmo da sociedade”, e que as pessoas olhassem mais para o aspecto humanitário e de proteção para essas mulheres. “Acho que as pessoas que estão trabalhando nesse conflito precisam ter um olhar de acolhimento em relação às mulheres.”
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