Filósofo coreano prevê mundo pós-Covid em ‘estado de guerra permanente’

  • 12/05/2020 17h14 - Atualizado em 12/05/2020 17h15
Kostas Tsironis/EFE Pandemia do novo coronavírus tem alterado drasticamente a rotina das pessoas

O filósofo e teórico social sul-coreano Byung-Chul Han, 61 anos, prevê um mundo marcado pelo senso de sobrevivência, sacrifício do prazer e perda do sentido da boa vida após a pandemia do novo coronavírus.

“O vírus é um espelho, ele mostra em que sociedade nós vivemos. E vivemos em uma sociedade de sobrevivência que se baseia, em última análise, no medo da morte. Agora, a sobrevivência se tornará absoluta, como se estivéssemos em estado de guerra permanente”, afirmou, em entrevista exclusiva à Agência EFE.

“Todas as forças vitais serão usadas para prolongar a vida. Em uma sociedade de sobrevivência, todo o sentido da boa vida se perde. O prazer também será sacrificado para o propósito maior da saúde”, acrescentou.

Han, que nasceu na Coreia do Sul, abandonou os estudos de metalurgia no país natal e se mudou para a Alemanha, onde estudou filosofia, literatura e teologia, é uma das mentes mais inovadoras na crítica à sociedade atual.

Na entrevista, ele destacou que o mundo está impregnado de hiper transparência e hiperconsumismo, além de um excesso de informação e uma positividade que inevitavelmente levam ao que ele define como a “Sociedade do Cansaço”.

O filósofo manifestou preocupação com a possibilidade de que, devido à pandemia, sejam impostos regimes de vigilância e quarentenas biopolíticas, perda de liberdade e fim da boa vida, e que a histeria e o medo coletivo provoquem falta de humanidade.

Byung-Chul Han também mostrou-se convicto de que a pandemia “fará que o poder mundial se desloque para a Ásia”, dando início a uma nova era.

Byung-Chul Han é um filósofo sul-coreano de 61 anos

Confira a entrevista completa abaixo:

A Covid-19 democratizou a fragilidade humana? Agora somos mais frágeis?

Está mostrando que a vulnerabilidade ou mortalidade humana não é democrática, mas depende do status social. A morte não é democrática. A Covid-19 não mudou nada a respeito disso. A morte nunca foi democrática. A pandemia, em particular, destaca os problemas sociais, os fracassos e as diferenças em cada sociedade. Pense, por exemplo, nos Estados Unidos. São principalmente os afro-americanos que estão morrendo por causa da Covid-19. A situação é semelhante na França. Como resultado do confinamento, os trens suburbanos que ligam Paris à região metropolitana estão superlotados. Com a Covid-19, pobres trabalhadores de origem imigrante nas áreas periféricas das grandes cidades estão adoecendo e morrendo. Eles têm que trabalhar. Os cuidadores, operários de fábrica, limpadores, ajudantes de loja e catadores de lixo não têm condições de trabalhar em casa. Os ricos, por outro lado, mudam-se para suas casas de veraneio.

A pandemia não é apenas um problema médico, mas um problema social. Uma razão pela qual tantas pessoas não morreram na Alemanha é porque não existem problemas sociais tão graves como em outros países europeus e nos Estados Unidos. Além disso, o sistema de saúde é muito melhor na Alemanha do que em Estados Unidos, França, Inglaterra e Itália.

Ainda assim, na Alemanha, a Covid-19 destaca as diferenças sociais. Aqueles que são socialmente fracos também morrem mais cedo. Pessoas com menos recursos que não têm condições de pagar seus próprios veículos viajam em ônibus e metrôs lotados. A Covid-19 mostra que vivemos em uma sociedade de duas classes.

Vamos cair mais facilmente em autoritarismos e populismos? Somos mais manipuláveis?

O segundo problema é que a Covid-19 não apóia a democracia. Como é bem sabido, os autocratas alimentam-se do medo. Na crise, as pessoas se voltam à busca por líderes. O húngaro Viktor Orban se beneficia muito disso, declara estado de emergência e o torna normal. Esse é o fim da democracia.

Liberdade versus Segurança. Qual será o preço a pagar pelo controle da pandemia?

Com a pandemia estamos caminhando para um regime de vigilância biopolítica. Não apenas nossas comunicações, mas até mesmo nosso corpo, nosso estado de saúde se tornam objetos de vigilância digital. De acordo com (a escritora e ativista social canadense) Naomi Klein, o choque é um momento favorável para a instalação de um novo sistema de regras. O choque pandêmico fará com que a biopolítica digital se instale em todo o mundo, que com seu sistema de controle e vigilância tomará conta de nossos corpos, dando origem a uma sociedade disciplinar biopolítica na qual nosso estado de saúde também será constantemente monitorado. O Ocidente será forçado a abandonar seus princípios liberais; e então existe a ameaça de uma sociedade de quarentena biopolítica no Ocidente, na qual nossa liberdade seria permanentemente limitada.

Quais consequências terão o medo e a incerteza na vida das pessoas?

O vírus é um espelho, ele mostra em que sociedade nós vivemos. E vivemos em uma sociedade de sobrevivência que se baseia, em última análise, no medo da morte. Agora a sobrevivência se tornará absoluta, como se estivéssemos em estado de guerra permanente. Todas as forças vitais serão usadas para prolongar a vida. Em uma sociedade de sobrevivência, todo o sentido da boa vida se perde. O prazer também será sacrificado para o propósito maior da saúde.

O rigor da proibição de fumar é um exemplo de histeria da sobrevivência. Quanto mais a vida for sobre a sobrevivência, mais medo se terá da morte. A pandemia está tornando visível de novo a morte, que tínhamos cuidadosamente reprimido e terceirizado. A presença da morte na mídia está deixando as pessoas nervosas. A histeria da sobrevivência faz com que a sociedade seja tão desumana.

Quem quer que tenhamos ao nosso lado é um portador potencial do vírus e temos que manter distância. Os idosos morrem sozinhos em asilos, porque ninguém pode visitá-los por causa do risco de infecção. Essa vida prolongada por alguns meses é melhor do que morrer sozinho? Em nossa histeria sobre sobrevivência esquecemos completamente o que é a boa vida.

Para sobreviver, sacrificamos voluntariamente tudo o que faz a vida valer a pena, a sociabilidade, o senso de comunidade e de proximidade. Com a pandemia, a limitação dos direitos fundamentais também é aceita sem questionamento, até mesmo os cultos religiosos são proibidos.

Os padres também praticam o distanciamento social e usam máscaras protetoras. Eles sacrificam a crença para sobreviver. A caridade se manifesta através do distanciamento. A virologia desestruturou a teologia. Todos ouvem os virologistas, que têm absoluta soberania de interpretação.

A narrativa da ressurreição dá lugar à ideologia da saúde e da sobrevivência. Diante do vírus, a crença torna-se uma farsa. E o nosso papa? São Francisco abraçou os leprosos…

O pânico sobre o vírus é exagerado. A idade média dos que morrem na Alemanha de Covid-19 é de 80 ou 81 anos, e a esperança média de vida é de 80,5 anos. O que nossa reação de pânico ao vírus mostra é que algo está errado em nossa sociedade.

Na era pós-coronavírus, nossa sociedade será mais respeitosa com a natureza, mais justa, ou a pandemia nos tornará mais egoístas e individualistas?

Há uma história, “Simbad, o Marujo”. Em uma viagem, Simbad e seu companheiro chegam a uma pequena ilha que parece um jardim paradisíaco. Eles acendem uma fogueira. De repente, a ilha balança, as árvores caem. A ilha era, na verdade, o dorso de um peixe gigante que estava parado há tanto tempo que a areia havia se acumulado, e árvores haviam crescido sobre ele. O calor do fogo em suas costas é que tirou o peixe gigante do sono. Ele mergulhou rumo às profundezas, e Simbad foi atirado ao mar.

Essa história é uma parábola, ensina que o homem tem uma cegueira fundamental, ele nem é capaz de reconhecer o que está em pé, contribuindo assim para sua própria queda.

Em vista de seu impulso destrutivo, o escritor alemão Arthur Schnitzler compara a humanidade a uma doença. Nós nos comportamos em relação à Terra como bactérias ou vírus que se multiplicam impiedosamente e, eventualmente, destroem o próprio hospedeiro. Crescimento e destruição se unem.

Schnitzler acredita que os seres humanos só são capazes de reconhecer postos mais baixos. Contra postos mais elevados ele é tão cego quanto a bactéria.

A história da humanidade é uma luta eterna contra o divino, que acaba necessariamente destruído pelo humano. A pandemia é o resultado da crueldade humana. Nós intervimos impiedosamente no ecossistema sensível.

O paleontólogo Andrew Knoll nos ensina que o homem é apenas a cereja no bolo da evolução. O verdadeiro bolo é feito de bactérias e vírus, que estão sempre ameaçando quebrar aquela frágil superfície, e assim ameaçam reconquistá-la.

“Simbad, o Marujo” é uma metáfora da ignorância humana. O homem acredita que está seguro, enquanto em questão de tempo ele sucumbe ao abismo através da ação das forças elementares. A violência que ele pratica contra a natureza lhe é devolvida pela natureza com maior força. Esta é a dialética do Antropoceno. Nesta era, o homem está mais ameaçado do que nunca.

A Covid-19 é uma ferida da globalização?

O princípio da globalização é maximizar os lucros. É por isso que a produção de dispositivos médicos, como máscaras protetoras ou medicamentos, mudou-se para a Ásia, e isso custou muitas vidas na Europa e nos Estados Unidos.

O capital é inimigo do ser humano. Não podemos deixar tudo para o capital. Nós não produzimos mais para as pessoas, mas para o capital. (Karl) Marx já dizia que o homem livre acaba reduzido a órgão genital do capital.

Também a liberdade individual, que hoje adquire uma importância excessiva, não é mais no último termo do que um excesso do próprio capital.

Exploramos a nós mesmos na crença de que é assim que nos realizamos, mas na realidade somos servos. (Franz) Kafka já apontou a lógica da autoexploração: o animal toma o chicote de seu dono e se chicoteia para se tornar o dono, mas não sabe que isso é uma fantasia produzida por um novo nó na correia. Nesta situação absurda estão as pessoas do regime neoliberal. O ser humano tem que reconquistar sua liberdade.

O coronavírus vai mudar a ordem mundial? Quem vai ganhar a batalha pelo controle e a hegemonia do poder global?

A Covid-19 provavelmente não é um bom presságio para a Europa e os Estados Unidos. O vírus é um teste para o sistema. Os países asiáticos, que acreditam pouco no liberalismo, têm sido bastante rápidos em assumir o controle da pandemia, especialmente nas áreas de monitoramento digital e biopolítico, o que é inimaginável para o Ocidente.

A Europa e os Estados Unidos estão tropeçando. Diante da pandemia, eles estão perdendo o brilho. (O filósofo esloveno Slavoj) Zizek afirmou que o vírus vai derrubar o regime na China. Zizek está errado. Isso não vai acontecer. O vírus não está impedindo o avanço da China. A China vai vender seu status de vigilância autocrática como modelo de sucesso contra a pandemia. Ela exibirá a superioridade de seu sistema ainda mais orgulhosamente em todo o mundo. A Covid-19 vai deslocar o poder global para a Ásia. Visto sob esta luz, o vírus marca uma mudança de era.

*Com informações da Agência EFE

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