Guerra na Ucrânia entra em impasse no âmbito militar, mas conflitos diplomáticos tendem a piorar

Em visita a Moscou, Xi Jinping demonstrou que China e Rússia estão dispostas a contra-atacar a influência internacional dos Estados Unidos e expressou inquietações com a expansão da Otan

  • Por Sarah Américo
  • 26/03/2023 12h00
SAUL LOEB / AFP Joe Biden e Xi Jinping Presidentes dos EUA, Joe Biden, e da China, Xi Jinping, apertam as mãos pela primeira vez em encontro antes da Cúpula do G20, em Bali, nesta segunda-feira, 14

Se no âmbito militar o conflito entre Rússia e Ucrânia entrou em um impasse, o mesmo não se pode dizer sobre os confrontos diplomáticos, que deixaram de ser regionais e passaram a ser a nível mundial. Os últimos acontecimentos, como a visita de Xi Jinping, presidente da China, à Rússia, o pedido de prisão de Vladimir Putin por parte do Tribunal Internacional Penal (TPI), o envio de armas mais pesadas à Ucrânia por parte da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), e a derrubada de um drone norte-americano por caças russos, comprovam que o confronto no Leste Europeu é “a ponta do iceberg de algo muito mais importante e maior que está acontecendo neste momento. Uns vão chamar de Guerra Fria 2.0 e outros de conflito entre China e Estados Unidos”, alerta o cientista político Leandro Consentino. “Estamos pensando em um conflito muito mais amplo que opõe a democracia liberal ocidental a países de cunho mais autoritário no Oriente”, acrescenta. Contudo, apesar de parecer algo novo, devido à proporção que ganhou, este é um confronto de aproximadamente meio milênio. “China vê a democracia como um caos e a Rússia sempre foi um incômodo para o Ocidente. Temos a continuidade de um jogo de poder que dura desde o fim da Idade Média, quando surge na Europa os Estados-nações consolidados. Isso é a continuidade do que estamos acompanhando nos últimos 500 anos”, explica o professor da FAAP e da Fundação Getúlio Vargas, Vinícius Vieira. “Quem achou que esse jogo fosse acabar e que teríamos uma estabilidade e consenso em torno da liderança e hegemonia norte-americana, e que ela seria útil para nós, o fato é que existem modelos alternativos, como o da China e da Rússia, que se legitimaram e construíram esferas de influência”, complementa.

Nesta semana, durante a visita de Xi Jinping a Moscou, o chinês demonstrou unidade entre os países diante das potências ocidentais. As duas nações estão dispostas a contra-atacar a influência internacional dos Estados Unidos e expressam inquietações com a expansão da Otan e sua aproximação com os países da região Ásia-Pacífico. Eles acusam a aliança de “prejudicar a paz e a estabilidade regional”, e concordam em aprofundar uma aliança que se tornou mais intensa desde o início da ofensiva russa na Ucrânia. Unidas pelo desejo de contra-atacar o domínio global de Washington, China e Rússia deixaram para trás as divergências da Guerra Fria e intensificaram a cooperação nos últimos anos. Em Moscou, Xi afirmou que as relações entre as duas nações “entram em uma nova era” e Putin celebrou “as possibilidades e perspectivas ilimitadas” da cooperação. Pequim e Moscou frequentemente atuam em conjunto no Conselho de Segurança das Nações Unidas, usando seu poder de veto como membros permanentes para impedir iniciativas dos países ocidentais. Apesar de acreditar que uma escalada militar do conflito aconteceria com um envolvimento direto dos países da Otan, Vieira diz que o que estamos testemunhando hoje é “uma ordem euro-atlântica de Estados Unidos, União Europeia e Reino Unido e euro-asiática, com China e Rússia no centro. O Ocidente luta com os russos via Ucrânia”. O especialista também fala que esse confronto é visto com bons olhos por Pequim, porque “ajuda a gerar essa percepção de declínio ocidental, que significa ascensão chinesa”.

xi jinping e Putin

Presidente da Rússia, Vladimir Putin, encontra líder chinês, Xi Jinping, em Moscou │Sergei KARPUKHIN / SPUTNIK / AFP

Às vésperas do um ano do conflito entre Rússia e Ucrânia, a China apresentou uma proposta de paz, sobre a qual Putin disse que poderia servir de base para uma solução. Desde a invasão, os chineses tentaram estabelecer uma posição neutra na guerra, mas Washington considera que suas propostas são “táticas de adiamento” para ajudar e dar mais tempo a Moscou. Então, por mais que Putin tenha demonstrado interesse na proposta, que valoriza os russos, os EUA não aceitariam que este plano fosse imposto. “Quando o projeto foi publicado, vimos a Otan rejeitando, porque não os agrada ter a China como mediadora. EUA e Otan não querem os chineses ganhando corpo como players, e não querem dar protagonismos para eles”, explica Paulo Velasco, doutor em ciência política pelo IESP-UERJ, lembrando que, recentemente, Pequim ganhou espaço ao contribuir para que Arábia Saudita e Irã retomassem as relações diplomáticas após sete anos de interrupção. O professor também fala que essa divisão do mundo em blocos em torno de Estados Unidos e China deixa o mundo mais perigoso e que a aliança entre Putin e Xi Jinping “coloca em cheque e desafia a hegemonia norte-americana no âmbito global e na política internacional, o que cria um clima de maior antagonismo entre esses países e indica um mundo mais perigoso”.

Vieira complementa dizendo que o que estamos presenciando é uma mudança global em curso, e “embora não esteja clara, implica na dispersão maior do poder do Ocidente para outras partes do mundo. Notadamente, a China, mais a Rússia, do ponto de vista militar, é relevante, e isso gera consequência inéditas nos últimos 200 anos”, época em que os chineses e indianos eram as maiores economias. “O poder político ainda está nas mãos do Ocidente, mas temos uma dispersão do poder econômico”, explica o professor da FAAP, que também fala que a única forma de se “tomar” hegemonia de alguém é por meio da guerra de transição hegemônica, que é quando as duas potências em questão entram em um confronto convencional. “Apesar de acreditar que ele [o conflito entre EUA e China] não vá acontecer por conta dos interesses múltiplos, isso não impede que ele entre em curso, até porque, na Primeira Guerra Mundial, os interesses foram deixados de lado”. Caso um confronto entre norte-americanos e chineses aconteça, a professora da ESPM, Renata Álvares, fala que o mundo conhecerá a primeira grande guerra mundial, uma vez que pontua que as outras duas que ocorreram foram mais centralizadas na Europa.

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